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28 anos. O Carandiru nosso de Cada Dia!

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Por Deise Benedito.

Formada em Direito Mestre em Direito e Criminologia pela UnB, Especialista em Relações Raciais, Feminista Antiracista Antiprisões.

Meu Deus, quantos anos. 28 anos se passaram. Na tarde do dia 02, eu estava trabalhando na Vara de Execuções Criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo, era Escrevente Técnico Judiciário, nesta época eu já fazia parte da Subcomissão de Politica Criminal e Penitenciaria da OAB/SP e também era membro do Geledés, Instituto da Mulher Negra. No meu setor de repente rumores de uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo, isto era por volta as 17 horas, uma agitação geral, os telefones tocavam sem parar, minha chefe na época, chamou todos nos e informou que havia estourado uma grande rebelião na Casa de Detenção no Pavilhão 09.

Imediatamente eu procurei entrar em contato com meus companheiros da Subcomissão de Politica Criminal e Penitenciaria da OAB, estavam em reunião, naquela época ninguém nem sonhava que um dia iria existir celular ou mesmo Whatsapp. Eu avisei minha chefe que ia até a OAB- que era bem perto do Fórum Criminal no centro de São Paulo, minha chefe e sabia das minhas atividades com direitos humanos, questões raciais e sistema prisional. A cidade já estava agitada, na OAB alguns membros do nosso grupo estavam reunidos, buscando informações sobre como se deu a invasão da Tropa de Choque na Casa de Detenção, mais precisamente no Pavilhão 09. Sabíamos que pelo movimento na cidade, era algo muito grave e grande.

Alguns colegas, foram para a casa de Detenção, tentavam obter maiores informações, outro grupo preferiu aguardar informações na OAB. Os telefones tocavam, as pessoas tensas e preocupadas. Ficamos acompanhando as reportagens, e resolvemos que não iriamos naquele momento, resolvemos deixar para ir no dia seguinte. O Padre Chico, Coordenador da Pastoral Carcerária, resolveu ir para Casa de Detenção com outros companheiros, e nós ficamos reunidos, na época um dos Juízes da Vara de Execuções Criminais, Ivo de Almeida, foi chamado para ir para a Casa de Detenção, lembro-me que foi uma grande agitação na Vara de Execução Criminal, no Pavilhão 09 havia presos provisórios sem condenação e já presos condenados.

Foi uma noite sem fim, na manha seguinte, por volta das 7 horas da manhã conforme combinamos, estávamos logo cedo na porta da Casa de Detenção de São Paulo, todas as ruas estavam lotadas de viaturas policiais, um numero imenso de policiais, incluindo a cavalaria da PM de SP. Na porta uma multidão de pessoas jornalistas, familiares, policiais da cavalaria e com cachorros, intimidavam, principalmente os familiares que estavam desesperados, exigindo informações corretas sobre quantos realmente tinha sido mortos, na verdade não houve uma rebelião e sim uma briga entre 02 presos, o pavilhão 09 já tinha na época uma superlotação. Se hoje se fala muito em hiperencarceramento, naquela época só a Casa de Detenção tinha 7 mil presos, quando a capacidade era para 1.400, na sua maioria jovens, negros, oriundos da Periferia de São Paulo.

Alguns familiares passaram a noite toda, e nos informaram que saíram vários caminhões frigoríficos, com presos mortos, ninguém dava informação. A maioria mulheres, com crianças no colo, gravidas, senhoras de idade, esposas, tias, irmãs, mulheres chorando, desesperadas gritando, pedindo informações, e a policia montada da cavalaria da PM jogava os cavalos em cima das mulheres, as xingavam de todos os nomes, e as mulheres retrucavam chamando-os de Assassinos. A cada pessoa que saia de dentro da Casa de Detenção, o desespero aumentava, as pessoas queriam informações, as listas com os nomes não batiam. Os cavalos lançados contra as mulheres e crianças, são cenas que jamais vou esquecer. Estávamos na porta, éramos mais de 10, São imagens que jamais vou esquecer, o dia 03 de Outubro de 1992. Estávamos em mais de 10 pessoas, da sociedade civil, Eduardo Suplicy tentava acalmar as mães, filhas, esposas. Não se tinha informações de quantos tinham morrido o clima era desesperador, algumas mulheres choravam copiosamente.

Eu conhecia apenas os distritos policiais, não tinha entrado ainda na Casa de Detenção, lá dentro já estavam algumas autoridades, o Padre Chico, e outros companheiros, estavam lá dentro desde a madrugada, somente depois de muitas negociações com a direção, aguardávamos a permissão para podermos entrar. Nunca vou esquecer de uma mulher negra, que me disse: "se você puder entrar, me diga se meu marido estava vivo ou morto". Passou-me o nome dele, depois de muito tempo nos foi permitido a entrada. E ai, quando foi na hora de entrar, eu sendo a única cara preta, na comissão, levei uma borrachada de um PM no peito. Dizendo que eu não ia entrar, foi quando um deputado estadual, Walter Feldman, me puxou pelo braço e peitou o PM, enfim, eu entrei.

Ao entrarmos os presos de outros pavilhões nos aplaudiam, eu desabei a chorar, os presos com os braços do lado de fora aplaudiam, a comissão de direitos humanos, eu só chorava, um cenário de dor, sofrimento, medo, desolador, os funcionários assustados, os presos atordoados, atravessamos os portões, o meu destino era o Pavilhão 09, no caminho eu olhava as grades, presos nos cantos chorando, alguns em pé outros agachados, chorando, trêmulos, o clima era realmente macabro, segui para o setor administrativo do Pavilhão 09 e outros foram para o Teatro, onde seria realizada uma missa, com outras autoridades.

No caminho o cheiro de sangue era muito forte, por causa do calor, inúmeros presos estavam lavando esfregavam o chão, jogavam muita agua, e no rosto as lagrimas buscavam ser o balsamo para tanta dor, os presos lavavam o chão, e o sangue vinha junto. Choravam copiosamente, assustados, amedrontados, eu passei antes no Teatro, estava lotado, presos de diversos pavilhões, autoridades vinculadas aos direitos humanos. Lembro que Hélio Bicudo, quando foi anunciado, foi aplaudido, muito aplaudido pelos presos.

Não me demorei muito, fui para o setor administrativo, o pavilhão estava todo cheio de agua e sangue. Estava com minha amiga Margarida Nogueira de Paula, Advogada Criminalista membro também da Subcomissão, simplesmente brilhante, tão brilhante que se transformou em uma estrela, e ilumina o meu caminho em busca de Justiça. No setor administrativo, fomos bem recebidos, os presos estavam separando os prontuários de alguns presos que conseguiram os nomes, através de outros presos.

Neste momento chegou o jornalista Caco Barcelos, que foi muito muito muito aplaudido pelos presos, principalmente por conta do lançamento do Livro Rota 66 no mês de agosto, onde ele denunciava as ações da PM em São Paulo, os presos em meio da dor, tinham na presença do Caco Barcelos, a oportunidade de estar com quem disse "Rota a Policia que Mata e tinha acabado de exterminar mais de 100", o livro foi a profecia de um extermínio anunciado. Eu seguia a checar os nomes dos presos buscando os prontuários, para que fosse feito uma lista, que pudesse ser passada aos familiares, e que fosse entregue ao Tribunal de Justiça de SP.

Eu e Caco Barcelos, juntamente com os presos, levantávamos os presos mortos. Os presos traziam os nomes em pedaços de papel, passamos a tarde lá no setor administrativo. Já era bem tarde ao sairmos do setor administrativo, ao chegar no Portão ainda um numero elevado de familiares, e lá estava a mulher negra, que me pediu informações sobre o marido, e felizmente ele estava vivo, tinha se fingido de morto, enquanto fuzilavam ele se jogou no chão, com um companheiro de cela sobre ele, só depois de horas, quando os funcionários foram autorizados a entrar na cela, ele gritou que estava vivo. Quando contei a mulher me abraçou, chorava, mas de alegria.

Os relatos dos presos, foram tenso, intensos, inesquecíveis. Levei já no final da tarde, uma lista para a VEC-TJSP a lista de alguns presos mortos, onde consegui levantar as execuções, onde a maioria dos que foram solenemente assassinados tinham entre 18 e 29 anos, a maioria sem condenação. Foi tudo muito cruel.

Acompanhei o Júri dos PMS, em particular do Ubiratan, fiz parte da Comissão de Apuração do Massacre do Carandiru. Vi o surgimento do PCC- Literalmente eu tive um batismo de sangue. Realmente o Carandiru não acabou... Está mais sofisticado as formas de massacre.

A Covid19 se encarrega em transformar as celas em Câmaras de Gás. Os nossos presídios são infelizmente o Carandiru nosso de cada dia... As vezes me pego pensando naquelas crianças nos braços das mães, nas mulheres gravidas que estavam lá, onde e como estarão estas crianças, hoje com 28 anos de idade se vivos estarão atrás da grades? Ou encontram-se mortos ou vivendo em um barraco num canto qualquer da capital, no que se transformaram?

Infelizmente se passaram 28 anos anos e outros Carandirus surgem como politica publica, para a Segurança Pública em meio do caos. O Haiti ainda é aqui, ainda matam pretos, como se mata baratas.