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A angústia é que deveria ser transmissível

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Denis Praça, defensor público titular do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Membro da Comissão de Juristas do Senado da República para atualização da Lei de Execução Penal (2013).

A pandemia de Covid-19 apresentou ao mundo um novo coronavírus com incrível capacidade de se transmitir, espalhando incerteza e apreensão multiplicadas à medida que o número de casos e de mortes crescia com espantosa velocidade. Os que têm algum conhecimento sobre a realidade do sistema prisional fluminense – e dose mínima de empatia – passaram a conviver com a angustiante expectativa do ingresso do vírus no ambiente prisional, diante das previsíveis consequências que seriam produzidas pela disseminação da doença entre a população carcerária.

Caso fosse dada ao coronavírus a possibilidade de conceber um ambiente mais propício a sua transmissão, dificilmente ele imaginaria algo muito diferente do sistema prisional. O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro publicou nota técnica, ainda em março, chamando a atenção para as características e carências enfrentadas por estabelecimentos prisionais, que acabam por manter as pessoas presas ainda mais expostas ao risco de contaminação quando comparada à população em geral.

A nota apontou o não fornecimento ininterrupto de água e de material de higiene pessoal, além da inexistência de álcool em gel, como obstáculo à necessária higienização das mãos; a impossibilidade de manutenção de distância segura entre as pessoas presas, dado o quadro de extrema superlotação; a ventilação insuficiente dos espaços carcerários, incapaz de colaborar com a redução da transmissibilidade do vírus, haja vista que sequer ameniza o calor; a ausência de equipes médicas nas unidades prisionais para realização de busca ativa de pessoas sintomáticas com imediata adoção de providências que evitem a disseminação do vírus; as deficiências do Pronto Socorro Hamilton Agostinho, que atende à população presa, incapaz de dar conta da demanda regular por saúde (A nota pode ser encontrada em mecanismorj.com.br).

Conhecedora da situação, a Vara de Execuções Penais do Estado do Rio de Janeiro (VEP), responsável pela execução de todas as penas de prisão no estado, adotou medida de redução da população carcerária. Também em março, autorizou que as pessoas presas possuidoras de permissão para deixar o estabelecimento prisional diariamente para trabalhar ou esporadicamente para visitar à família prosseguissem o cumprimento da pena em prisão domiciliar. Nada obstante a relevância da medida, verifica-se que se mostrou movida muito mais pela lógica enviesada de segurança pública que rege muitas decisões judiciais do que pela preocupação com a preservação do direito à saúde e à vida.

A medida protegeu diretamente as pessoas presas que já se encontravam em regime semiaberto e deixavam regularmente as unidades prisionais para ter contato pessoal com o mundo exterior, independentemente de integrarem ou não grupos mais sujeitos ao agravamento do estado de saúde no caso de contração de Covid-19. Evitou-se, com isso, que pessoas presas impossibilitadas de deixar os estabelecimentos prisionais recuperassem algum grau de liberdade.

Em seguida, a VEP passou a indeferir a ampla maioria dos pedidos individuais de autorização para prosseguimento do cumprimento da pena em prisão domiciliar, mesmo quando formulados por pessoas que integram grupos de risco, seja pela faixa etária ou pelo enfrentamento de comorbidades, muitas vezes mais de uma. As decisões apontam a redução da população carcerária promovida pela própria VEP e já citada aqui e outras medidas adotadas para a contenção da pandemia no ambiente prisional como suficientes. Apesar de as pessoas idosas e com comorbidades serem justamente as mais vulneráveis, necessitando de maior proteção da saúde e da vida, as decisões têm sido, em regra, respaldadas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

As medidas de contenção da disseminação do vírus invocadas pela VEP como justificativa para se evitar “a concessão indiscriminada de prisão domiciliar a apenados que cumpram suas penas em regime fechado e semiaberto” (expressão utilizada em decisão proferida nos autos n.° 0262229-77.2018.8.19.0001) seriam adotadas por um sistema prisional incapaz de fornecer sabonete às pessoas presas. Parece-nos, no mínimo, ingênuo acreditar nessa possibilidade, como também não nos parece razoável crer que o sistema de Justiça corresponsável pela construção de um sistema penitenciário dantesco, como o do Estado do Rio de Janeiro, seja capaz de enfrentar os desafios colocados pela mais grave pandemia dos últimos cem anos, sem que haja na sociedade um despertar de consciência que a faça exigir a preservação da vida e da saúde de qualquer ser humano, ao invés de mais encarceramento. Talvez os efeitos já produzidos pela pandemia sejam capazes de sensibilizar-nos.

A Coordenação de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, com base em dados extraídos do sistema de informação utilizado pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP), aponta o crescimento de 33% do número de mortes no sistema prisional do início do isolamento social até o dia 15 de maio de 2020, quando comparado ao mesmo período do ano anterior. Trata-se de um aumento expressivo a ponto de justificar, ao menos, uma desconfiança de que esteja de alguma forma relacionado à pandemia. A própria SEAP admite quatro mortes por Covid-19 e outras doze por “complicações pulmonares” (https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/20/rj-tem-48-mortes-em-presidios-durante-quarentena-da-covid-19-o-maior-numero-em-6-anos.ghtml). Dados do Departamento Penitenciário Nacional já permitem supor que a letalidade da Covid-19, consideradas as pessoas presas infectadas, é cinco vezes maior quando comparada àquela que atinge a população em geral (afirmação contida na petição inicial de ação civil pública autuada sob o n.º 0092341-42.2020.8.19.0001). A falta de testes que se verifica em todo país também se reproduz no sistema prisional, impedindo que se tenha uma medida exata da crise.

Persistindo esse quadro, a única providência capaz de impedir a tragédia em andamento, pelo menos à luz dos números oficiais, será a falta de transparência. A busca pela fidelidade e acessibilidade dos dados e informações acerca das consequências produzidas pela pandemia no sistema prisional é essencial para que se impeça qualquer tentativa de narrativa de suficiência das medidas levadas a efeito.

A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro propôs ação civil pública para garantir o acesso à informação sobre a saúde das pessoas presas, diante de sucessivas recusas de fornecimento de prontuários médicos, além da não exposição de informações globais oficiais sobre os efeitos do coronavírus no ambiente prisional e a não identificação de pessoas integrantes de grupos de risco, valendo notar que diversos atestados de óbito de pessoas presas vêm sendo preenchidos com causa mortis indeterminada.

O não acesso aos dados, nunca é demais lembrar, impede o monitoramento da evolução da pandemia no sistema prisional, produzindo a ilusão até aqui por muitos manifestada da eficácia e suficiência das medidas já adotadas.
Ainda há tempo para se fazer algo. Esperamos que o aumento do conhecimento sobre a situação do sistema prisional em tempos de pandemia possa aumentar também a taxa de transmissibilidade da angústia que acomete os que bem conhecem essa situação, motivando a adoção de outras providências capazes de frear as graves consequências que a pandemia já está impondo e ainda pode impor às pessoas presas.

Ainda há tempo para se fazer algo. Esperamos que o aumento do conhecimento sobre a situação do sistema prisional em tempos de pandemia possa aumentar também a taxa de transmissibilidade da angústia que acomete os que bem conhecem essa situação, motivando a adoção de outras providências capazes de frear as graves consequências que a pandemia já está impondo e ainda pode impor às pessoas presas.