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A ATUAL POLÍTICA DE DROGAS E ENCARCERAMENTO EM TEMPOS DE PANDEMIA NAS FAVELAS DO RIO DE JANEIRO

Por Erivelto Melchiades
Bacharel em Direito, diretor da rede Reforma, cofundador da associação Eusoueu, coordenador da Marcha das favelas egresso do sistema penal , morador do morro do Cantagalo

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Não é de hoje que a favela clama por paz, justiça e liberdade! Este clamor já ecoa pelos quatro cantos por décadas e mesmo assim o Estado, que é o garantidor de direitos e também de deveres, se faz omisso e opressor em diversos assuntos, principalmente os que estão relacionadas às questões envolvendo drogas, encarceramento e atualmente a questão do coronavírus nas favelas. Operações policiais totalmente em desconformidade com o que diz o ordenamento jurídico, que põe na mira do gatilho quem nada tem a ver com esta falsa guerra às drogas imposta pelo Estado, sob o pretexto de fazer cessar a violência, apreender drogas e armas, e prender ou eliminar aqueles que supostamente atentam contra a saúde pública, denominados como traficantes.
Sabemos perfeitamente que a favela não produz drogas ou armas. Não existem refinarias de cocaína ou plantações de maconha. Se um dia foi encontrado alguma refinaria ou plantação, foram casos isolados que contabilizamos perfeitamente e sem nenhuma dificuldade, e mesmo assim o tratamento recebido pelos moradores das favelas é de quem é responsável por todas as mazelas possíveis da cidade. O Estado, se valendo deste discurso odioso e aterrorizante, reverberado entre as demais camadas da sociedade, provoca e cria um verdadeiro cenário de terror, medo, mortes, torturas, ampliado diariamente pelos veículos de comunicação, que rotineiramente exibem em seus telejornais tiroteios em comunidades, levando apenas em consideração o depoimento dos agentes públicos envolvidos nas operações e levando todos a crer que a favela é um local de medo e terror e que os policiais são os “super heróis” que fazem cessar a violência e prendem o bandido, sem nem mesmo se questionarem o que fez a rotina daquele local ser alterada e as circunstâncias em que foi feita aquela operação policial.
O poder público no que se refere aos territórios de favelas não provê o básico para que os moradores destas áreas tenham o mínimo de dignidade possível. Na favela, o saneamento básico é precário! É o esgoto que está a céu aberto, ratos e baratas por todos os lados, criando um ambiente propício para diversas doenças, a saúde é precária e não consegue atender o básico a população, e o único aparato estatal presente rotineiramente nas favelas é a presença da polícia, que altera toda uma rotina com seu espetáculo diário de medo, ódio e terror.
Quando está acontecendo uma operação policial, a favela para. O posto de saúde suspende as atividades, as creches e escolas fecham, os moradores ficam em pânico dentro de suas casas, temendo e pedindo a Deus para que sua casa não seja alvo de uma bala de fuzil ou para que sua porta não seja arrombada por um policial em busca de drogas e armas. Todo este filme para apresentar uma suposta “resposta para a sociedade”. Os jovens que são abordados em operações policiais, na sua grande maioria são negros, portando algum sinal de poder (cordão, relógio, celular, camisa de time, chinelo ou tênis de marca), são “confundidos” com traficantes, recebendo uma abordagem abusiva, sendo obrigados a responder perguntas que não sabem ou não podem dizer, assim produzindo provas contra si mesmos, sendo ameaçados e obrigados a conduzir a guarnição policial onde supostamente haja drogas e armas e pessoas envolvidas com o tráfico. Se na abordagem policial o abordado estiver portando algum entorpecente, logo o tratamento recebido é o de traficante, não importando para a autoridade as circunstâncias em que a droga foi encontrada, a quantidade, ou muito menos a condição econômica do indivíduo e na sua grande maioria, são levados para a delegacia juntamente com as drogas e armas que foram aprendidas em toda a operação policial e os únicos depoimentos são dos policiais que participaram da apreensão e da pessoa que foi conduzida, ficando a cargo da autoridade que efetuou o suposto flagrante a tipificação penal. É assim que muitos jovens favelados são enquadrados na lei de drogas, em geral, enquadrados nos artigos 33 e 35 (tráfico de drogas e associação para o tráfico de drogas) superlotando as carceragens, não encontrando uma solução para o problema criado, muito pelo contrário, fazendo com que estes jovens ingressam na faculdade do crime (cadeia), sem mesmo ser um criminoso altamente periculoso.
A cadeia é a continuação do crime. Tem que ser muito forte para sair de lá e tentar mudar de vida. Parece um imã que puxa novamente o indivíduo para lá. É difícil pôr a vida em ordem, devido a inúmeros fatores: tortura do Estado, abandono da família, ausência de recurso financeiro e o principal que é a falta de oportunidade para se inserir em sociedade. A cadeia é um mundo de propostas, pois ali se encontra os supostos “responsáveis” por inúmeros negócios criminosos na cidade, desde estelionatários, ladrão, e chefes de boca de fumo e quem está a espera de uma oportunidade de crescimento. A cadeia cria um vínculo entre as pessoas, pois é tanta dificuldade para sobreviver por lá, que somente se unindo é possível cumprir a pena imposta, fazendo com que surjam laços afetivos entre os presos, tanto para o lado mal quanto para o lado do bem. Como pode haver ressocialização do preso se o Estado é o principal violador de direitos? Resultado disso é o grande número de reincidentes no sistema criminal.
É necessário o levante das camadas pobres contra a opressão do Estado. Chega de tratarem a favela como a culpada de toda a violência presente no Estado. Tá mais do que na hora de a favela eleger seus próprios representantes políticos, para a defesa dos interesses da comunidade. Chega de oportunistas se valerem da causa da favela para a obtenção de fama e dinheiro. Tá na hora da militância da favela se unir em prol das causas que realmente importa para nós, como a causa do desencarceramento, da proibição das drogas, do direito à saúde e a educação. Tá na hora de o poder legislativo ter a maioria de representantes oriundos das favela, pois só assim os nossos interesses serão atendidos, no que diz respeito ao mínimo existencial. Vamos lutar e fazer valer a nossa constituição federal dentro da favela, pois só assim encontraremos a tão sonhada paz, justiça e liberdade.
Falando agora um pouco da situação atual nas favelas em tempos de pandemia, recentemente o STF julgou a ADPF 635, que suspendeu as operações policiais enquanto durar a pandemia do coronavírus, salvo em casos excepcionais, que devem ser justificadas por escrito pela autoridade competente e encaminhada ao MP que é o órgão fiscalizador das ações do Estado. Assim mesmo, se tem notícias em que diversas localidades a polícia continua fazendo incursões em favelas, não respeitando nem a ordem do Supremo e dando continuidade a seu modus operandi de agir nessas localidades.
Importante também trazer a tona o caso famoso que está nos noticiários de TV, a prisão de Fabrício Queiroz e sua esposa que estava foragida. Ambos estão sendo acusados de crimes contra a ordem pública, as famosas “rachadinhas”. Pois bem, foi decretada a prisão deles, sendo que apenas Queiroz foi localizado e preso, enquanto sua esposa permanece foragida. Dias depois, fomos surpreendidos com a decisão do STJ, que concedeu a ambos o direito da prisão domiciliar, sob a alegação de problemas de saúde e inclusão em grupo de risco de saúde, o mesmo STJ, que tem incessantemente negando habeas corpus neste sentido para pessoas que se encontram privados com problemas de saúde e em grupo de risco, não seguindo a orientação do CNJ a respeito do tema e deixando bem claro para a sociedade a seletividade penal, onde a cadeia é feita para os pobres e os ricos ficam em prisão domiciliar.
O caso Queiroz é apenas mais um dos inúmeros que aconteceram, para mostrar que o sistema penal é seletivo, ou seja, a camada pobre sofre os reflexos da prisão e os crimes que geralmente são praticados por esta camada são sucessíveis de penas rigorosas, enquanto os crimes cometidos pela camada rica não são combatidos com o mesmo rigor e geralmente as penas de prisão são mais brandas, quem não lembra do caso do ex Governador Sérgio Cabral e sua esposa Adriana Ancelmo, que recebeu a pena de prisão domiciliar, devido a ter filho menor de 12 anos. Quantas mulheres que se encontram privadas de sua liberdade tem filhos menores de 12 anos? Tem mulheres que estão com filhos lactantes que estão privadas de liberdade. Até quando ficaremos com nossos olhos atados sendo feitos de marionetes? Se todos nós somos iguais perante as leis, porque o princípio da igualdade não é posto em prática? A razão é bem simples. Enquanto não tivermos pessoas humanas nos Poderes executivo, legislativo, e principalmente no Judiciário, a situação tende a piorar.