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A COVID-19 e o sistema socioeducativo

Patrícia Silva

· Análises

Pesquisa revela que os Tribunais de Justiça têm prorrogado o prazo de Internação Provisória de Adolescentes internados, o que viola o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Resolução nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça.

Com o país atingindo o marco negativo de mais de 115 mil mortes ocasionadas pela pandemia de COVID-19 a privação de liberdade de adolescentes pode ser considerada uma aliada à disseminação do vírus e a contaminação em massa de internos e funcionários(as) das unidades. Enquanto o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) propõe a redução do número de pessoas encarceradas como forma de conter a proliferação do vírus, os Tribunais de Justiça mantêm políticas de segregação, que contrariam, inclusive, dispositivo literal de lei e agravam ainda mais os riscos ao público alvo do sistema socioeducativo, em sua maioria, adolescentes negros, pobres, periféricos e de baixa escolaridade.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 108, estabelece que há a possibilidade de decretação de internação provisória do/a adolescente que comete algum ato ilícito desde que devidamente comprovada a existência do fato e a prova da autoria, pelo prazo máximo de 45 (quarenta e cinco) dias. No entanto, a legislação juvenil não prevê hipótese de prorrogação do prazo de quarenta e cinco dias. De acordo com os artigos 108 e 183 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a medida de internação provisória que ultrapassar os 45 dias é constrangimento ilegal e deve ser imediatamente revogada. Contudo, não é isso que se vê no contexto da pandemia. Após análise jurisprudencial no site dos Tribunais de Justiça do Distrito Federal e de São Paulo, o que se constata é que as internações provisórias estão sendo prorrogadas reiteradamente e que a pandemia está sendo utilizada como fundamento para essa ilegal e temerária extensão do prazo de internação.

No Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ/DF), a prorrogação do prazo de internação provisória de adolescentes é uma regra, e não exceção. Entre março a julho de 2020 (período de alastramento da pandemia) todas as quatorze decisões proferidas no Tribunal prorrogaram o prazo da internação provisória, contrariando o texto literal do Estatuto da Criança e do Adolescente, acionando argumentos imprecisos e desconsiderando as Recomendações do CNJ no contexto da pandemia.

Em 10 de junho de 2020, por exemplo, o TJ/DF (Habeas Corpus nº 0717630-61.2020.8.07.0000) negou habeas corpus interposto pela Defensoria Pública em favor de um adolescente apreendido em flagrante no dia 21 de março de 2020. O TJ alegou que os atos infracionais supostamente cometidos eram graves e afirmou que os impactos ocasionados pela disseminação do novo coronavírus acabaram “afetando o regular trâmite processual”, ocasionando um excesso de morosidade na conclusão do processo. Mesmo havendo no processo informação de que o adolescente deveria seguir para acompanhamento psiquiátrico, o Desembargador Relator Waldir Leôncio Lopes Júnior prorrogou o prazo de internação provisória e seguiu ignorando o texto da Lei e ampliando as hipóteses de contaminação pelo novo coronavírus, em face das já conhecidas condições sanitárias do sistema socioeducativo.

No mesmo período, em São Paulo, três decisões prorrogaram a internação provisória de adolescentes invocando os mesmos malfadados argumentos. Em um dos casos, de 1º de julho de 2020, o TJ/SP prorrogou a internação (Habeas Corpus (nº 2094345-26.2020.8.26.0000) de adolescente que estava internado desde 26 de março de 2020, com a mesma argumentação, ilegal, adotada no caso do TJ/DF: as suspensões processuais e o atraso excessivo no desenvolvimento do andamento processual.

Lamentavelmente, esses argumentos esdrúxulos antecedem o contexto da pandemia. Em recente pesquisa publicada na Revista Redes, pude constatar que também no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul há uma tendência a prorrogar o prazo de internação acionando novamente os mesmos argumentos: gravidade do ato infracional e inaptidão ao convívio social. Em estudo sobre dezenove decisões proferidas entre janeiro e outubro de 2018, pude constatar que em sete ocasiões a Sétima Câmara Cível do Tribunal autorizou a prorrogação.

Trata-se da reiteração de um argumento que contraria a lógica e que ofende a literalidade do texto do ECA. Se a pandemia (ou qualquer outro motivo) atrasa a realização dos atos processuais pode o adolescente ser penalizado por um fato completamente alheio a sua vontade? É lícito contrariar o texto literal do Estatuto da Criança e do Adolescente com argumentos genéricos e não especificados? Pode-se ignorar a recomendação de reduzir a população do sistema socioeducativo (Recomendação 62/CNJ) para conter a pandemia e paradoxalmente lotar ainda mais as unidades de internação?

Essas posições tomadas pelos Tribunais de Justiça violam os artigos 108 e 183 do ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente, ignoram as Resoluções 165/2012 e 62/2020, ambas do Conselho Nacional de Justiça e, o mais grave, colocam em risco a vida dos adolescentes e dos/as funcionários/as dos centros socioeducativos contribuindo para prolongar os efeitos da pandemia que, a julgar pelas decisões judiciais e pelo negacionismo dos governos, está longe de acabar.

Patrícia Silva é bacharela em Direito pela Faculdade Meridional - IMED, de Passo Fundo - RS; integrante do Grupo de Pesquisa "Criminologia, violência e sustentabilidade social", coordenado pelo Prof. Dr. Felipe da Veiga Dias; foi bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq (2017/1) e pela FAPERGS (2018/1); integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), presidenta interina do Instituto Libertarte; e advogada.