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Para começo de conversa: sobre os esquecidos e invisibilizados do sistema carcerário

Por Fabiana da Silva

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Iniciando uma conversa, ou melhor, continuando uma velha conversa que começou quando o Lud nasceu e tantos meninos pretos nascem. Isso aconteceu há tantos anos que às vezes esquecemos que um menino preto nascendo e crescendo é motivo de comemorar tendo em vista as lutas travadas para hoje existir para além da margem de dados que dão conta que há cada 23 minutos um homem preto é assassinado no Brasil.

Logo essa história precisa ser focada no passado para se entender o futuro que colhemos (ele no sistema e nós família que estamos presos juntos mentalmente com ele).


Lud foi um menino preto esperto e brincalhão. A escola para ele nunca foi um lugar confortável. Desde a educação infantil a cor da sua pele nunca foi algo aceito na escola. Lembro que fui chamada para conversa para resolver uma questão com o cabelo dele que devido uma promessa da minha mãe só podia ser cortado quando ele tivesse sete anos. O cabelo tinha um cachinhos muito pequenos que podia acumular piolhos e meninos não deveriam ter cabelos grandes. Ele amava os cabelos e chorou por uma semana quando tivemos que cortar.


Ao entrar na adolescência a escola já era uma página virada na vida dele, pois entrava por um portão e saia pela grade. Não gostava da forma como os professores o olhava e dizia que ele era uma batata podre em sala de aula contaminando as outras. Resultado é que hoje com 29 anos se tornou parte da estatística de mais um homem preto analfabeto.


Ludgero entrou a primeira vez no sistema quando tinha 21 anos. Pegou dois anos por associação ao tráfico. Estava com 75 gramas de maconha. 75 gramas de problemas por assim dizer. Ao ser preso deixou uma mulher grávida.


No decorrer da primeira cadeia as visitas que recebia era da mãe que cheia de comorbidade ia de 15 em 15 dias fazer as visitas. Levar comida e biscoitos de vaquinha (atendendo os pedidos). Esses dois anos passaram rápido. O menino que ali entrou saiu mudado. Muito mudado. O vício em cocaína antes inexistente se tornou um problema.


Ao entrar no sistema somente a maconha era companheira. Segundo ele ajudava na conexão das ideias e a limpar a mente. Com a cocaína também veio as alucinações e a mania de perseguição. Sempre tinha alguém querendo algo dele. Sua cama, sua toalha e por aí vai.


De uma entrada no sistema para outra se passou três anos. Nesse tempo começou a trabalhar como lavador de lava jato e tirou de novo os documentos, pois os que tinha ao entrar no sistema foram perdidos.


A segunda entrada se deu de novo por associação ao tráfico. Dessa vez pego em uma baile funk com outros amigos. Dessa segunda vez a entrada foi diferente. Já na delegacia quando fomos entender a situação o quadro estava diferente. O rosto deformado por conta da violência sofrida. Um ouvido estourado por conta de uma coronhada, lábios rachados e uma costela quebrada.


Essa segunda entrada também trouxe mudanças. Não tem mais visita da mãe, morta segundo alguns próximos de desgosto. Perde o caçula e presenciar a violência das agressões foi demais para ela.

“O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido,veremos que sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular.” (Gonzales, Lélia. 1980.)

Importante mostrar, que um preso nunca é só um preso. Ele carrega consigo uma rede familiar e essa rede carregar aqui fora as marcas dos passos dados por ele. Uma mãe que presencia esse tipo de violência não pode ser a mesma depois do ocorrido. É necessário falar que as mães pretas que adoecem no sistema precisam ser pensadas como parte dessa estrutura violadora de direitos. São essas mulheres que buscam caminhos para garantir minimamente que seus filhos tenham o direito à vida quando o Estado deveria guardar e ressocializar aqueles e aquelas que estão sob sua tutela.

Cuidado esse inexistente nesse momento de Covid-19 nos presídios. O uso de máscara é exigido dos familiares, mas os trabalhadores e visitantes religiosos não fazem uso dela. Em algumas unidades falta novalgina. Logo ter álcool em gel para controle e higienização é luxo.


O Covid -19 chegar para se somar uma série de violações de direitos como superlotação, comida estragada, falta de medicação, dentistas, castigos físicos e espaços insalubres. Como na sela do Lud que tem 47 homens dividindo uma cela com uma latrina.


Não menos são os relatos de comida estragada e outras violações. Ludgero ganhar dinheiro retemperando comida com Sazon dentro da cadeia. Com o dinheiro ele comprar seu cigarro, sabão em pó e outros produtos que acabam antes de vir uma nova sucata [1].

“Às vezes a comida vem estragada, mas a gente tempera de novo com o sazon e mete bronca. Isso ou ficar sem comer. Por sinal esse fim de semana com esse calor o almoço veio na hora da jantar e a janta estamos aguardando vir, mas suave, Dada. A gente aqui está acostumado. Estou com uma panela [2] na boca, mas sei que dentista aqui não vai vir ver. Se os presos abrirem a boca o dentista chegar em São Paulo em dois tempo de tão ruim que as coisas aqui estão.” (Lud, Novembro 2020)

Narrativas como essas são comuns nas visitas e bilhetes trocados. Ela simboliza políticas sádicas de retirada de direitos. Direitos esses que todo preso e seu familiar têm garantido na Constituição Federal.

“Desde o momento que ao acusado é dada voz de prisão, em seu favor passa a prevalecer o direito constitucional de ter respeitada sua integridade, em conformidade com o disposto no art. 5º, XLIX: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.

Nós familiares precisamos de um espaço como esse para expor que essas pessoas precisam ter garantido esses direitos. Falar que não são números e sim pessoas com identidades, personalidade e com ligações familiares e uma base que resiste aqui fora, resistindo cotidianamente em meio a dor de saber que seu filho, irmã, irmão, marido, pai, mãe estão sofrendo violações.

Falar para nós é quebrar esse silêncio provocado pelo racismo, e é racismo sim, pois cada prisão tem um pouco de navio negreiro, como dizem muitos que ali estão. Escrever e falar nos possibilita quebrar as correntes do silêncio que se impõe dentro desses espaços, e essa escrita vem atravessada de afeto, pois lutamos contra essas estruturas de amarração a fim de garantir que nossos pensamentos e consciência crítica produzam um novo lugar que se respeite tanto o preso quanto o seu familiar. A prisão não pode ser uma extensão da sociedade. É necessário mudar essa lógica para produzirmos alternativas de cuidado e real ressocialização que deixe de invisibilizar esses sujeitos.

Finalizo essa conversa pedido que se reflita na necessidade de imaginar novos mundos sem prisão. Transformar e imaginar novas possibilidades de termos uma sociedade que o cárcere não se torne mais um espaço de violações contínuas de direitos. Uma sociedade que reconheça que seu problema se inicia não na prisão e sim nos passos que levou o sujeito até ali. Enquanto sociedade é necessário refletirmos que: “A ferida do presente ainda é a ferida do passado vice-versa; o passado e o presente se entrelaçam-se como resultado.” (Kilomba, Grada.2019)


Para todas as mães que resistem nas filas e carregam a angústia em meio às lembranças dos risos dos filhos e filhas eu peço a bença.

[1] Produtos e objetos que são levados familiares na custódia ou visita.

[2] Dente quebrado ou estragado.

Fabiana da Silva é pedagoga formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, idealizadora e coordenadora da Ong Apadrinhe um Sorriso e Assessora da Ouvidoria Externa da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e não menos importante irmã do apenado Lud.