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Presunções em defesa da prisão e obstáculos de última hora: decisões judiciais sobre liberdade no contexto da pandemia*

 

Ana Luisa Barreto, Daniel Fernandes, Lucas Matos, Vinícius Romão (Grupo Clandestino de Estudos em Controle, Cidade e Prisões)

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Apresentamos, nesse texto, as primeiras reflexões de uma pesquisa coletiva realizada pelo Grupo Clandestino de Estudos em Controle, Cidade e Prisões, em que são analisados os sentidos da prática discursiva do sistema de justiça baiano sobre o cárcere no contexto da pandemia de Covid-19. As decisões no âmbito da execução penal expressam a resposta a uma pressão jurídico-política que demanda do Poder Judiciário a explicitação de suas leituras sobre a prisão, as condições de vida das pessoas presas, a salubridade do ambiente prisional e as dinâmicas jurídicas da execução.

Essa pesquisa se orientou pelo seguinte problema: diante da pandemia, como o Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) tem decidido os pedidos de liberdade no campo da execução penal? O objetivo era compreender o papel que o Judiciário exerce em relação às prisões na atual conjuntura de agravamento dos riscos à vida. A investigação foi conduzida a partir da análise de decisões sobre pedidos de prisão domiciliar e progressão de regime prisional motivados pela pandemia.

A ausência de condições básicas de saúde no cárcere tem sido compreendida como efetiva imposição de tortura (SILVA e FROMER, 2020), cujas condições específicas já foram tratadas e denunciadas pela sociedade civil e comunidade acadêmica. Ressaltamos as consequências desse quadro quanto à proliferação de diversas doenças contagiosas, como HIV, tuberculose, sífilis e hepatite. O sistema prisional sem dúvida cumpre um papel no cenário mais amplo de política de morte física, subjetiva e epistêmica alicerçada pelo racismo, conformando a degradação da vida negra em diversas esferas. Saúde e liberdade precárias são dimensões de um genocídio multifacetado (VARGAS, 2010).

É nesse cenário que buscamos refletir como o Judiciário, órgão com capacidade de intervenção nessa realidade, interage com a prisão, especialmente quando tem de produzir decisões diante de pleitos de liberdade daqueles que buscam evitar outra forma de sufocamento com a chegada da Covid-19.

A primeira aproximação do material empírico coletado trouxe achados preliminares importantes para o desenvolvimento da pesquisa. Em apenas um dos 34 casos houve o deferimento parcial dos pedidos, determinando a transferência do preso para o regime semiaberto. Neste caso único, o pedido relacionado à Covid-19 não serviu de fundamento para determinar a transferência. Todos os outros pedidos tiveram como resultado: 1) o indeferimento da liminar, negando o direito pleiteado; 2) o não conhecimento, ou seja, o não processamento da ação, quando se considerou não ser admissível o uso do habeas corpus; ou 3) o encaminhamento do processo para redistribuição, quando se entendeu que, por questões procedimentais, caberia a outro(a) desembargador(a) decidir sobre a liminar.

Considerando essa tendência de negar as demandas por liberdade pautadas na crise sanitária, nosso esforço foi entender, a partir de uma abordagem qualitativa das decisões, como o Tribunal tem enfrentado a tensão pandemia/cárcere. Como as decisões estruturam os argumentos e hierarquizam os requisitos exigidos para a ampliação dos espaços de liberdade no contexto de risco à saúde de pessoas presas?

Observado de forma ampla, o conjunto de decisões permite identificar o caráter sucessivo e variável dos requisitos para a concessão de progressão de regime, prisão domiciliar ou livramento condicional. Esta maneira de decidir representa a construção sucessiva de obstáculos de última hora que inviabilizam a concessão dos pedidos. Sempre que as circunstâncias consideradas pelo TJBA parecem estar presentes, são apresentados novos entraves à liberdade.

O primeiro obstáculo apresentado é de natureza formal. Diante dos riscos extraordinários representados pela pandemia no cárcere, o Tribunal parece tentar neutralizar suas responsabilidades com argumentos formais questionáveis, até mesmo em termos meramente normativos, como no indeferimento de pedido em sede habeas corpus por ausência de apreciação do pedido pelo juízo da execução penal (1º grau). A tese da “supressão de instância” é mobilizada constantemente nas decisões, ainda que na maioria das vezes articulada com outros argumentos mais diretamente relacionados com o caso concreto. Em algumas decisões, a supressão de instância chega a inviabilizar a discussão sobre os eventuais riscos de contaminação da pessoa presa.

Em outras decisões, apesar do mérito da demanda ser aparentemente enfrentado, sustentam-se fundamentações abstratas, que nem chegam a dialogar com as alegações relativas ao caso concreto. Na decisão 5 [1], a defesa traz uma extensa fundamentação sobre os riscos que a prisão em regime fechado representa para o paciente, alegando demonstrar documentalmente que ele faz parte do grupo de risco, sendo hipertenso, obeso e diabético, e preenche os requisitos da Resolução n° 62 do CNJ. O pedido também afirma que havia sido protocolado agravo em execução em dezembro de 2019, mas que o recurso estava parado por conta do atraso na manifestação do Ministério Público. A decisão, contudo, não enfrenta esses argumentos, sustentando não estarem presentes “elementos capazes de revelar o alegado constrangimento ilegal sofrido pelo paciente”, sem se aprofundar nas questões trazidas pela defesa.

Mas a lógica dos “obstáculos de última hora” se expressa de forma mais evidente nas decisões que dialogam com os argumentos concretos mobilizados nos habeas corpus e, em termos normativos, com os dispositivos da Recomendação n° 62 do CNJ. É interessante notar, por exemplo, como o Tribunal trata as questões de idade da pessoa e comprovação de doenças prévias. Ter idade inferior a 60 anos (não idoso) e/ou não apresentar a prova de comorbidades são fatores decisivos para a negativa de pedidos nas decisões. No entanto, quando um ou outro (ou os dois) elementos estão presentes, eles não são, por si só, garantias da liberdade. Criam-se outros obstáculos, aumentando-se o nível de exigência para a comprovação da situação de risco.

Mas a “suficiência” probatória tampouco significa a concessão da liberdade. A decisão 14 [2] é representativa: uma mulher hipertensa e portadora de diabetes pediu para ser colocada em prisão domiciliar, alegando haver uma agente penitenciária infectada por Covid-19, com a qual teria tido contato. O Tribunal, embora reconheça essas circunstâncias como verdadeiras, indefere a liminar em razão da idade da mulher (36 anos). Neste caso, o julgador não nega a força probatória do documento que comprova a existência de comorbidades. Tampouco pode mobilizar o argumento, como em muitas decisões, de que não há casos comprovados na unidade prisional em questão, pois foi demonstrado que há, pelo menos, um caso e que a paciente teve contato direto com uma agente penitenciária que testou positivo para Covid-19. Diante desse quadro, a decisão faz surgir novos obstáculos. Assume que a paciente é hipertensa, mas alega que não há comprovação de que a Covid-19 está “descontrolada”. Admite a existência de casos na unidade prisional, mas alega que não está superlotada e que a mulher presa não apresenta — até o momento — sintomas gripais. Por fim, o golpe argumentativo final: a presa não é idosa.

Casos como esse evidenciam uma lógica decisória que não se pauta no risco comprovado à saúde da pessoa presa, mas exige a ocorrência de dano efetivo e consumado a sua integridade, de difícil comprovação. Há, no quadro geral da amostra analisada, uma constelação discursiva que implica um sofisticado jogo de presunções em defesa da prisão, especialmente a partir da mobilização arbitrária e, no limite, negacionista, em relação à noção de risco.

Ainda no jogo de presunções em defesa da prisão, chama atenção a fé inabalável do Tribunal nas medidas normativas e administrativas de contenção do contágio da Covid-19 nas prisões. Essa linha de argumentação aparece com duas roupagens na prática discursiva do Tribunal. Em alguns casos, é mobilizada uma referência expressa e genérica às medidas declaradas ou efetivamente adotadas pela Secretaria de Administração Penitenciária (Seap), entre as quais se destacam a suspensão das visitas e o isolamento de presos, apresentadas como formas eficazes de impedir a exposição das pessoas presas a riscos.

A perspectiva de “isolamento da prisão” para proteção das pessoas presas é absolutamente equivocada. Os estudos prisionais têm demonstrado que, ao contrário da tipologia ideal da instituição total, a prisão não é um “mundo à parte” em relação à sociedade mais ampla, mas um espaço social estruturado em fluxos de pessoas, objetos, documentos e informações, realidade que não muda com a proibição de visitas (CUNHA, 2004/2005; GODOI, 2017). Esse argumento cínico nega que a ampliação dos espaços de liberdade e o desencarceramento massivo são as efetivas formas de proteger as pessoas presas, seus familiares e os(as) trabalhadores(as) atuantes no sistema prisional.

A ausência de visitas representa, na realidade, um fator de risco para as pessoas presas. As visitas nos presídios garantem complementação (ou fornecimento) de alimentos, fiscalizam as violências ocorridas intramuros e fornecem medicamentos e apoio diante dos graves danos à saúde mental que pode representar a situação de encarceramento (LAGO, 2020). Em outras ocasiões, o Tribunal exige, sem dizer como, que se prove o óbvio: que a situação de aprisionamento representa riscos para a saúde dos presos.

Essa fé inabalável nas medidas de contenção costuma vir acompanhada de uma postura negacionista dos julgadores diante das condições estruturais das prisões baianas. Quando, por exemplo, há alegação de superlotação da unidade carcerária como um fator que potencializa os riscos de contágio, o Tribunal não analisa essa condição. Alega-se a formulação genérica de não existência de evidências de constrangimento ilegal ou de ausência de comprovação do risco de contaminação por Covid-19. Em verdade, o que acaba chamando atenção é a inversão argumentativa da noção de “risco”. Por meio da categoria racista da periculosidade [3], o Tribunal opera uma inversão idealista de quais riscos são “abstratos” e quais são “concretos”.

A decisão 6 [4] ajuda a compreender a questão. O habeas corpus apresenta uma série de argumentações em torno da situação jurídica do paciente que, estando em regime fechado, já teria cumprido os requisitos para a progressão de regime e, até mesmo, para o livramento condicional. Esses pedidos haviam sido feitos 15 dias antes ao juiz de 1º grau, que, até o momento da impetração do habeas corpus, não havia se manifestado. O pedido defendia o cabimento da análise pelo Tribunal diante da gravidade da pandemia e dos riscos a que o paciente estava submetido. O desembargador não chega a discutir o argumento jurídico, alegando supressão de instância. A decisão ensaia uma comparação, presente em muitos discursos sobre pandemia e cárcere, entre os riscos que a pessoa presa representaria para a “sociedade” e os riscos que a manutenção da prisão representa para sua saúde. Nos termos da decisão, “o paciente tem histórico que indica, prima facie, a propensão à prática de delitos”, inexistindo, por outro lado, “a demonstração de qualquer risco concreto à integridade do Paciente”.

A permanência de um viés “periculosista”, ao desconsiderar os riscos à vida e à saúde, conforma a noção do risco concreto que emanaria da eventual liberdade (ou mesmo da prisão domiciliar) de sujeitos inferiorizados por determinismos que justificam violências institucionais contra eles. Dessa forma, verificamos a continuidade de violações por meio de decisões judiciais que tratam os presos como corpos marcados pela desumanização, que autorizam a banalização dos pedidos destinados a resguardar sua saúde, sejam eles relacionados a casos graves ou não.

É possível concluir que a prova ou não de doenças preexistentes, a idade da pessoa presa, o contato com pessoas infectadas ou a superlotação da unidade prisional têm pouca importância para o TJBA no momento de decidir sobre a liberdade. Essas pistas, ainda que iniciais, ajudam a prosseguir na compreensão de que o Judiciário é peça importante da violência do sistema penal, exacerbada pela pandemia de Covid-19.

*Uma versão mais ampliada deste texto foi publicada na seção “Reflexões na Pandemia” da Revista Dilemas. Acessível em: https://www.reflexpandemia2021.org/texto-97.

 

[1] Processo nº 8006289-94.2020.8.05.0000, DJe, 25 de março de 2020.

[2] Processo nº 8007780-39.2020.8.05.0000, DJe, 6 de abril de 2020.

[3] Sobre o marcador racial da categoria “periculosidade” na teoria criminológica e na prática judicial, ver Luciano Góes (2020), Flauzina (2008), Anitua (2015); Barreto (2018).

[4] Processo nº 8006624-16.2020.8.05.0000, DJe, 25 de março de 2020.