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Covid-19 e a convivência familiar no sistema socioeducativo

Monica Cunha, Co coordenadora do Movimento Moleque
Técnica em Educação social
Faz parte da Coalização Negra por diretos.

· Publicações do site

A pandemia de Covid-19 trouxe para todos e todas enormes desafios. Do isolamento social à crise econômica, não vivemos nada parecido com isso em nossas vidas.
 

Reconhecendo a inexistência de precedentes históricos, no Rio de Janeiro, a Justiça determinou que os jovens em cumprimento de medida de semiliberdade – na qual são realizadas atividades extramuros, embora durmam na unidade – passassem a cumpri-la em suas casas, para que pudessem exercer o seu direito à convivência familiar durante a quarentena. Um acerto, a nosso ver.
 

Mas aqueles jovens que cumprem medidas de internação, nas unidades fechadas do DEGASE (Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro), se encontram em situação absolutamente precária. Com a suspensão do direito à visitação, necessária para reduzir a exposição destes jovens a fatores de contaminação externos e para evitar que os familiares adentrem em um ambiente propício à proliferação da doença, especialmente em um cenário de superlotação, como é o caso das unidades do DEGASE, a promoção do direito à convivência familiar passa a ser um desafio quase insuperável. Esse foi o maior prejuízo que a pandemia trouxe para os adolescentes e seus familiares.
 

O momento da visita é sagrado para os internos e suas famílias. É o momento do abraço e do beijo negados no dia a dia da unidade. É matar a saudade, comer algo diferente da comida azeda da quentinha recebida diariamente. É ter notícias dos seus irmãos, dos seus amigos.
 

Neste contexto, devemos reconhecer o esforço dos profissionais técnicos das unidades em promover contatos entre os adolescentes e seus familiares, ainda que com enormes dificuldades, como o precário acesso à internet pelas famílias e, às vezes, até mesmo a telefone. Este esforço de promoção do direito à convivência familiar, mesmo não sendo o ideal, é fundamental para que não se rompam, ainda mais, os laços afetivos.
 

Apesar disso, nas últimas semanas, o Movimento Moleque, do qual sou fundadora e coordenadora, recebeu relatos de mães que denunciavam agentes do DEGASE que usavam as videochamadas entre familiares e jovens como uma espécie de premiação pelo comportamento apresentado pelos mesmos nas unidades, ou punição, vetando o acesso a alguns. Isso é um absurdo!!!
 

Precisamos sempre destacar o papel da família no processo de reintegração social do jovem autor de ato infracional. O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente reconhece que a convivência familiar é pressuposto para o saudável desenvolvimento do adolescente, razão pela qual toda a política de atendimento à criança e ao adolescente deve obedecer o princípio da municipalização, como forma de evitar que a distância geográfica entre a residência e o equipamento onde se presta o atendimento seja um obstáculo ao exercício à convivência familiar e comunitária.
 

Como pode, então, uma instituição cuja principal função é promover a reintegração social de jovens, criar barreiras para que esta seja alcançada?
 

A privação do já precário exercício do direito à convivência familiar, por questões disciplinares, é barganhar com direitos fundamentais. Ao me deparar com esses relatos foi impossível não associá-lo aos crimes praticados durante a escravidão no Brasil. Pensei na mãe escravizada que teve seu filho retirado de seu colo para ser vendido como se fosse um bicho. A lógica de que a convivência familiar das famílias negras e pobres pode ser barganhada remete diretamente à desumanização do negro e da negra, historicamente imposta por séculos de escravidão.

Mais uma vez, senti o racismo institucional rasgar a minha alma. Negar a um filho e a uma mãe o contato mínimo através de videochamadas, em plena pandemia, é expressão da mais perversa desumanização.
 

SER FAMÍLIA NÃO É CRIME!