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Grito contra genocídio nas prisões ecoa na ONU e na OEA

Por Elaine Bispo Paixão, Raissa Maia e Monique Cruz*

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Por Elaine Bispo Paixão, Raissa Maia e Monique Cruz*

São Paulo, 24 de julho de 2020 - Críticas à gestão da pandemia pelo governo Bolsonaro são ouvidas nos quatro cantos do mundo: não faltam dados, reportagens e declarações de autoridades mostrando a longa e dolorosa crise político-sanitária instalada no Brasil. O grito de denúncia de movimentos e organizações da sociedade civil sobre a situação do sistema prisional chegou longe e agora reverbera nos corredores dos órgãos internacionais.

O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo. São 860 mil pessoas submetidas a diversas violações de direitos que sustentam uma engenharia de reprodução de doenças e mortes. As pessoas encarceradas não recebem assistência médica, acesso à água para a realização da limpeza pessoal e dos espaços, itens básicos de higiene, suporte de medicamentos e alimentação adequada. Além disso, têm de viver em espaços superlotados e sem ventilação. Tudo isso faz com que a população encarcerada registre uma alta incidência de doenças infectocontagiosas, que se disseminam de forma incontrolável.

O ambiente do cárcere, que já estava em colapso antes da pandemia, possui todas as condições necessárias para o alastramento descontrolado da COVID-19 – o que tem resultado em altas taxas de mortalidade, apesar da subnotificação. O Estado brasileiro, no entanto, não tem adotado providências para controlar os efeitos da pandemia na população prisional. Pelo contrário, tem se valido deste momento historicamente trágico para intensificar o genocídio em curso há tempos no país.

Diante da ausência de políticas efetivas para proteger a vida das pessoas privadas de liberdade, mais de 200 organizações e movimentos de todo o país apresentaram um apelo urgente à ONU (Organização das Nações Unidas) e à CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, a Organização dos Estados Americanos) denunciando o Estado brasileiro e pedindo explicações sobre a catástrofe no sistema prisional, que tem perpetuado danos irreparáveis à saúde e, sobretudo, à vida das pessoas encarceradas.

No documento, as organizações e movimentos apresentaram informações sobre o cenário angustiante que as pessoas presas e suas famílias têm passado: falta de explicações sobre como estão os seus familiares presos; deterioração das condições de saúde e higiene, porque sempre recaiu sobre as famílias a responsabilidade de fornecer produtos de limpeza e cuidado básico; falta de acesso a testes e médicos; incomunicabilidade; aumento de rebeliões; prática de tortura e tratamento degradante, desumano e cruel e subnotificação no registro de óbitos, que nos alerta para um cenário muito pior do que o projetado.

Tudo isso é agravado por um sistema de justiça que continua usando a privação de liberdade como regra, na contramão de todas as recomendações nacionais e internacionais, e que se nega a promover a redução emergencial da superlotação, especialmente das pessoas presas que se enquadram no grupo de risco. A denúncia mostra, ainda, que todos estes problemas são intensificados pela atuação racista e seletiva do Judiciário e dos agentes de segurança pública, que somente reforçam o encarceramento em massa de pessoas já marcadas pelas opressões sociais e étnico-raciais presentes na sociedade brasileira.

Engana-se quem acredita que a denúncia apenas impõe um novo constrangimento diplomático a um Estado insensível à chacota internacional. Essa intervenção estruturada, representativa e potente significa mais uma peça, mais uma camada, na documentação histórica do projeto de extermínio aprofundado e acelerado pelo governo Bolsonaro, e que tem como principais alvos o povo negro, periférico, indígena e LGBTQI+.

Em resposta à denúncia apresentada pelas organizações e movimentos, tanto a ONU quanto a OEA convocaram reuniões com sobreviventes, familiares e representantes das organizações e movimentos para conhecer mais informações sobre a gravidade da situação do cárcere brasileiro. Durante estes encontros, foram feitos relatos em primeira pessoa sobre a ausência de notícias por parte de familiares encarcerados, fome, tortura e uso da prisão como arma contra defensores de direitos. Também foram dados depoimentos sobre abusos dentro do sistema socioeducativo, prisões políticas de indígenas e o descumprimento pelo poder judiciário das diretrizes para o desencarceramento propostas pelo Conselho Nacional de Justiça, através da Recomendação n. 62 de 2020. Em suma, um retrato devastador do genocídio descrito pelas pessoas que estão na linha de frente da denúncia e da resistência. Relatos sobre a dor da espera permanente pela morte, sua ou dos seus.

Não cabem dúvidas de que é preciso seguir pressionando o Estado brasileiro para que respostas e políticas emergenciais sejam implementadas. É fundamental, ainda, ecoar todas as medidas que surjam a partir das denúncias e seguir articulando, como sempre fizemos, ações urgentes que protejam o direito à saúde e à vida das pessoas presas. Nos canais internacionais ou na porta dos presídios, a nossa luta contra o encarceramento em massa segue e é mais urgente do que nunca.

*Elaine Bispo Paixão é familiar de pessoa presa e articuladora da Agenda Nacional pelo Desencarceramento na Bahia; Raissa Maia é advogada e pesquisadora no ITTC (Instituto, Terra, Trabalho e Cidadania) e Monique Cruz é assistente social e pesquisadora na Justiça Global.