Voltar ao site

Quem não gosta de gente não serve para ser juiz

Simone Schreiber
Desembargadora Federal
Associação Juízes para a Democracia

 

· Publicações do site

Quem não gosta de gente não serve para ser juiz. Essa frase é da juíza Andréa Pachá. Talvez seja a chave para nós, juízes criminais, pensarmos o nosso papel. É certo que temos muito poder sobre a vida das pessoas e muita responsabilidade. O Direito nos dá ferramentas para resolvermos questões que nos são apresentadas no processo. Como se o processo fosse um quebra-cabeças que temos que montar, encontrando a solução correta para o caso. O réu cometeu o crime? As circunstâncias em que agiu são justificáveis? Ele deve ser responsabilizado? Que pena deve ser aplicada?

Contudo, não basta examinar os documentos anexados aos processos e aplicar a lei. O juiz não pode perder de vista que está decidindo a vida de pessoas. Um bom exercício que todos os juízes deveriam fazer é se colocar no lugar do outro. A empatia, capacidade de sentir o que sentiria uma outra pessoa, caso estivesse na mesma situação que ela, é talvez a mais importante qualidade de um juiz.

Contudo, pode parecer muito difícil ter empatia por uma pessoa totalmente diferente de você. Nós, juízes, somos brancos, integramos castas privilegiadas, frequentamos ótimas escolas, viemos de famílias estruturadas, não precisamos trabalhar quando éramos crianças, não experimentamos carências de toda ordem. Nossos réus são negros de periferia, de baixa escolaridade, vêm de camadas sociais mais baixas e vivenciaram realidades muito diferentes. Por isso existe a dificuldade, quase a impossibilidade, para boa parte da magistratura, de se estabelecer essa necessária conexão entre o juiz e aquele que está sendo julgado.

O resultado são julgamentos morais que muitas vezes permeiam as decisões judiciais. Sentenças coalhadas de reprovações morais que deixam evidente a forma como o juiz se vê, um ser completamente distinto e superior àquele que está julgando.

Em setembro de 2015 o Supremo Tribunal Federal julgou a ADPF 347, afirmando que o sistema carcerário brasileiro violava de forma sistemática e permanente direitos fundamentais previstos na Constituição, retirando das pessoas presas sua própria humanidade, revelando um estado de coisas inconstitucional.

Nesse julgamento, os ministros do Supremo ressaltaram que os juízes também eram responsáveis pela situação caótica do sistema prisional brasileiro. Foi dito que os juízes não podiam mais se comportar como se a superlotação carcerária e a permanente violação da dignidade das pessoas presas não fossem problema deles. Tal realidade de coisas tinha que ser sopesada nas decisões judiciais penais.

Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes, “não podemos mais continuar a falar da existência desse sistema prisional como se estivéssemos a reclamar do frio ou do calor, como se não tivéssemos nenhuma influência na lamentável situação a que chegamos. Temos sim algo a ver com isso”.

Contudo, passados cinco anos, nada mudou. Não houve redução da população prisional, não foi resolvido o problema do déficit de vagas (segundo dados do DEPEN de 2019 temos 461.026 vagas no sistema para 773.151 presos). Não foi reduzido o percentual de presos provisórios, da ordem de 33%.

O número de presos provisórios é escandaloso. Pessoas que estão sendo processadas, podem vir a ser condenadas ou não. Caso condenadas, podem sofrer penas privativas de liberdade ou não. A privação de liberdade durante o processo impede as pessoas de se defenderem de forma adequada. Os advogados não têm acesso fácil aos presídios. As defensorias públicas não têm estrutura para atender os presos nos estabelecimentos prisionais.

Ademais, a perda precoce da liberdade da pessoa que ainda está sendo julgada não pode privá-la de ser levada à presença do juiz, de ir ao fórum para acompanhar os atos processuais, participar da oitiva das testemunhas, ser interrogada pelo juiz assistida por seu defensor. O direito do réu preso de estar presente na sala de audiência decorre da garantia constitucional do devido processo legal e é imprescindível ao exercício do direito de defesa.

O ano de 2020 nos trouxe a realidade da pandemia do COVID-19, uma situação de exceção que levou o Conselho Nacional de Justiça e os Tribunais a adotarem várias medidas excepcionais para fazer frente à realidade.

A Recomendação 62 do CNJ instou os juízes a reavaliarem as situações de prisão, de modo a retirar do sistema pessoas vulneráveis e a reduzir substancialmente a população carcerária, diante do risco concreto de disseminação do coronavírus nas prisões. Dentre outras medidas, determinou temporariamente a suspensão da realização das audiências de custódia.

As audiências de custódias concretizam o direito do preso de ser levado à presença do juiz no momento de sua detenção. Nesse ato, os juízes avaliam se o preso foi vítima de violência policial no ato da prisão, a própria legalidade da prisão e a situação pessoal do custodiado. Tudo analisado, o juiz decide se há justificativa legal para a decretação da prisão preventiva daquela pessoa ou se deve ser colocada em liberdade (o que, repita-se, deveria ser a regra, já que não há como afirmar sua culpa sem processo).

Diante da dificuldade de circulação de pessoas durante a pandemia, o CNJ está agora avaliando uma proposta de que as audiências de custódia sejam feitas por videoconferência. Organizações da sociedade civil, defensorias públicas, e diversos movimentos sociais de advocacia popular e que representam as pessoas privadas de liberdade e suas famílias, se manifestaram de forma contrária, deflagrando a campanha #torturanãosevêpelatv.

A questão aqui é de princípio. A participação do preso em audiência de custódia por videoconferência não é condizente com o devido processo legal. O mesmo se diga da realização de audiências de instrução e julgamento de réus presos por videoconferência.

A videoconferência só contribuirá para que o juiz se distancie mais do preso, aumentando esse abismo de que falei no início. A realização da audiência de custódia por videoconferência não atende aos fins a que se destina esse ato processual. Como é possível obter um depoimento fidedigno do preso sobre violência policial se ele estiver custodiado no ambiente prisional? Como é possível que o juiz o enxergue, o ouça, o veja como pessoa, em ambiente de videoconferência? Isso sem considerar que, na sistemática do Código de Processo Penal, qualquer ato processual de que o preso participe por videoconferência tem que contar com a atuação de dois advogados, um no local da custódia e um na sala de audiências (art. 185, § 5º), o que já se vê como de difícil implementação, especialmente quando o preso está assistido pela defensoria pública.

O Código de Processo Penal regulamenta o interrogatório por videoconferência e estabelece que a medida só se justifica excepcionalmente. O direito de presença decorre da ampla defesa e é MAIOR do que o direito de estar virtualmente presente. Em outras palavras, estar em um ambiente de videoconferência não é o mesmo do que estar na sala de audiências, participando pessoalmente do ato, ao lado do defensor e na presença do juiz.

O Estado pode acusar pessoas da prática de crimes, julgá-las e puni-las, mas deve agir dentro de determinados parâmetros. Há limites claros na Constituição impostos ao poder punitivo do Estado. A videoconferência, significando a não presença do réu, a negativa do direito de estar na Corte de Justiça no momento em que sua vida é decidida pelo Estado, é mais um passo na retirada da dignidade do acusado, da sua condição de pessoa e de sujeito no processo, e também no caminho da massificação dos procedimentos burocráticos da justiça.

Como dito, é uma questão de princípio, de escolha do sistema de justiça penal que queremos em um Estado Democrático de Direito. Não se pode, em nome da praticidade, economicidade, ou comodidade dos órgãos de justiça, aumentar a distância abissal e o absoluto estranhamento que já existem entre os réus, de um lado, e os atores do sistema de justiça penal, de outro.

Admitir a normalização das audiências judiciais de presos por videoconferência é contribuir para a desumanização do sistema de justiça penal no Brasil.