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Resumo do levantamento "Vacinação de pessoas presas e os parâmetros de direitos humanos: violação ao princípio de não discriminação na atuação estatal contra a COVID-19 no Brasil"

Por Fabio Cascardo

· Publicações do site

A pandemia de COVID-19 e sua Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 30 de janeiro de 2020, trouxe uma variedade de novos desafios relativos à proteção da vida, da saúde e a prevenção de violação de direitos contra as pessoas presas. Desde o primeiro momento da crise internacional, organizações e especialistas de todo o mundo acenderam um alarme para os riscos de a pandemia ganhar contornos ainda mais agravados em razão das condições que caracterizam a execução penal, como o convívio em espaços avessos ao distanciamento entre indivíduos e, em regra, sob más condições de higiene e de indisponibilidade de equipamentos e atenção à saúde. As principais medidas de prevenção à propagação do vírus se viam estruturalmente obstaculizadas, representando riscos para os variados atores que compõem a comunidade prisional (pessoas presas, trabalhadores, prestadores de serviço, visitantes, advogados, autoridades do sistema de justiça, autoridades religiosas etc.) e para a sociedade de maneira geral, haja vista a potencialização da circulação do vírus a partir desses espaços [1].

Ao tratar especificamente do tema da vacinação e do reconhecimento de grupos de risco no âmbito do sistema prisional, o presente artigo reflete este cenário novo, complexo e repleto de riscos e indefinições, no qual a Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB/RJ tem buscado apoiar e aportar reflexões que sirvam à proteção dos direitos humanos das pessoas presas no Brasil. Esse tem sido um esforço articulado a outras entidades que compõem o Sistema Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (Lei Estadual nº 5.778/2010), mas cujas reflexões podem ser relevantes para intervenções e debates em outros estados ou mesmo nacionalmente, haja vista as obrigações legais assumidas pelo Estado brasileiro e que impõem a adoção de medidas sanitárias para o enfrentamento à COVID-19 compatíveis com o direito internacional dos direitos humanos.

Os planos de imunização e as pessoas presas

 

O Plano Nacional de Operacionalização da Vacina contra a COVID-19 no Brasil se destina a orientar as autoridades responsáveis pela gestão operacional e o monitoramento da vacinação nas instâncias federal, estadual, regional e municipal, oferecendo diretrizes gerais da Campanha Nacional de Vacinação contra a COVID-19. O plano é composto por dez eixos, sendo especialmente relevantes para a presente análise o item 1, que versa sobre a situação epidemiológica e os grupos de risco, e o item 3, que trata dos objetivos da vacinação e dos grupos prioritários. Ao delinear os grupos de risco, entende-se não haver uniformidade na ocorrência de COVID-19 na população brasileira, de maneira que as formas mais agravadas da doença e o óbito dos pacientes se veem relacionados a fatores como características sociodemográficas, preexistência de comorbidades, síndrome de down, além de idade superior a 60 anos de idade e indivíduos transplantados [2]. A população privada de liberdade, por sua vez, está inserida dentre os “grupos com elevada vulnerabilidade social”, entendida como suscetível a um maior impacto ocasionado pela COVID-19, tendo em vista as condições em que vive. Constam desses grupos também os povos indígenas vivendo em terras indígenas, populações ribeirinhas e quilombolas, pessoas em situação de rua, refugiados residentes em abrigos e pessoas com deficiência [3].

Ao determinar os objetivos da vacinação e os grupos prioritários, o PNI estabelece que, em um momento inicial de escassez de vacina no mercado mundial, o objetivo principal da vacinação no Brasil é a proteção dos indivíduos com maior risco de desenvolvimento de formas graves e óbitos, além da manutenção do funcionamento dos serviços de saúde e dos serviços essenciais. Diante dessas considerações, enumeram-se os segmentos populacionais que, conforme as diretrizes gerais, devem compor os grupos prioritários para vacinação em todo o país, como as pessoas com 60 anos ou mais institucionalizadas, as pessoas com deficiência institucionalizadas, as pessoas de 75 anos ou mais, as pessoas de 60 a 74 anos, as pessoas com comorbidades, a população privada de liberdade e os funcionários do sistema de privação de liberdade [4]. Diversos outros grupos também são apontados como prioritários, como trabalhadores da educação do ensino básico, ensino fundamental, ensino médio e ensino superior, forças de segurança e trabalhadores de transporte, por exemplo. Contudo, tendo em vista o persistente cenário de falta de vacinas, informes técnicos têm sido publicados pela Coordenação-Geral do Programa Nacional de Imunizações no sentido de se oferecerem as primeiras doses disponíveis para trabalhadores da saúde, pessoas idosas residentes em instituições de longa permanência (institucionalizadas); pessoas a partir de 18 anos de idade com deficiência e vivendo em residências inclusivas (institucionalizadas); e população indígena vivendo em terras indígenas, para em seguida contemplar as pessoas idosas. Na medida em que sobrem ou cheguem mais doses, os demais grupos podem ser paulatinamente contemplados, sem que uma ordem rígida se imponha entre todos eles.

Os planos regionais e locais de operacionalização da vacinação analisados durante a confecção deste artigo evidenciam que as diretrizes nacionais têm efetivamente balizado as escolhas dos estados e municípios, de forma que os grupos prioritários neste momento inicial no PNI constam do que localmente tem se delineado como as Fases 1, 2 e 3 dos planos de operacionalização. Atualmente, esses planos estão na fase 2, onde se encontram as pessoas idosas e, na fase seguinte, em regra, estão as pessoas com comorbidades. No entanto, a partir desse grupo (ou seja, a partir do que, em geral, se identifica como a 3ª fase) os planos estaduais e municipais variam muito na ordem de prioridade dos demais segmentos, dentre eles as pessoas privadas de liberdade e os servidores penitenciários. O estado do Ceará, por exemplo, não especifica em seu cronograma em que momento das “demais fases” estão as pessoas privadas de liberdade, não havendo qualquer previsão nesse sentido [5]. Enquanto isso, em Fortaleza, o segmento está incluído no 3º grupo da 4ª fase, após às pessoas com deficiência permanente grave e pessoas em situação de rua [6]. No Pará, os presos são o 4º grupo da 4ª fase, atrás de trabalhadores da educação, Forças Armadas e servidores penitenciários, mas antes de pessoas com deficiência permanente grave. No estado, as forças de segurança são contempladas já na 2ª fase, antes mesmo de indivíduos com comorbidades [7]. Na capital Belém, por sua vez, a população presa sequer está incluída no cronograma, que vem detalhado até a sua 4ª fase. Nela, os funcionários do sistema prisional – e apenas eles – são o 3º grupo a ser vacinado, depois dos professores e das forças de segurança [8]. A capital Manaus e seu estado Amazonas também apresentam incongruências em seus planos, onde a população prisional está na 4ª fase, ora antes das forças de segurança (Amazonas), ora depois delas e dos trabalhadores da educação (Manaus), como também se dá no programa de Minas Gerais [9]. Para ficar apenas em alguns exemplos, no Recife a população privada de liberdade também consta da 4ª fase, mas como o 7º grupo a ser vacinado nela, após trabalhadores do transporte aéreo/portuário e caminhoneiros, diferentemente de todos os planos anteriormente mencionados [10]. Já no Rio de Janeiro, a prefeitura não detalhou o cronograma a partir da 3ª fase, inserindo sem ordenação de prioridades na 4ª fase as pessoas privadas de liberdade e os servidores penitenciários, junto com uma série de outros grupos de risco, como portadores de deficiência [11].

Três apontamentos gerais valem ser ressaltados, ainda, em relação aos planos de operacionalização da vacina e a imunização de pessoas presas, em todas as esferas. Em primeiro lugar, esses planos preveem a vacinação in loco das pessoas presas, ou seja, mobilizando as respectivas secretarias de administração penitenciária ou de justiça, em coordenação com os serviços de saúde, para que a vacinação ocorra dentro do sistema prisional. Essa é mesmo a praxe da imunização de presos no Brasil. Segundo, ainda não há quantidade de vacinas suficiente no país para cumprir o calendário que os planos locais classificam como fases 1, 2 e 3. Desse modo, é impossível dizer, nesse momento, quando presos e servidores penitenciários começarão a ser imunizados. Por fim, em relação à nomenclatura utilizada, apesar do PNI e os planos locais se valerem do termo “pessoas privadas de liberdade”, todos eles se referem tão-somente ao universo da população prisional [12], sem que se inclua nesse grupo os pacientes de hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas e clínicas de reabilitação, por exemplo. Nos termos do art. 3º, II, da Lei n.º 12.847/2013 [13], que cria o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, e para o direito internacional [14], todos esses grupos são entendidos como pessoas privadas de liberdade e merecem ser alvo de proteção especial, como se verá a seguir.

Direitos humanos e o princípio de não discriminação: vacinação de pessoas presas e pertencimento a grupos de risco adicional para a COVID-19

Enquanto direito fundamental, o direito à saúde encontra amparo nos artigos 6º, 196 e 197 da Constituição Federal, onde se preconiza o seu caráter difuso e se consagra o acesso universal e igualitário às ações e serviços voltados à sua promoção, proteção e recuperação. As pessoas presas, naturalmente, estão protegidas pela Constituição, a qual assevera expressamente em seu art. 5º, XLIX, que aos presos é assegurado o respeito à integridade física e moral. A Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210/84) reforça que a assistência à saúde da pessoa presa é um dever do Estado (art. 11) e direito do preso (art. 41, VII), de forma a compreender o seu caráter preventivo e curativo (art. 14).

Na esfera internacional, o direito humano à saúde possui respaldo em uma pluralidade de tratados e instrumentos, destacando-se a exigência de assistência médica (art. 25º) elencada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e, no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a prescrição de todas as medidas necessárias para o pleno exercício do direito à saúde física e mental, obrigando aos Estados a “prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas doenças” (art. 12, 2, “c”, do Pacto). No mesmo sentido, as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos (Regras de Nelson Mandela) tem na saúde e assistência médica da pessoa presa um de seus eixos estruturantes, alvo de uma série de parâmetros. Sua Regra 24 é assertiva ao estabelecer que “a prestação de serviços médicos aos reclusos é da responsabilidade do Estado”, bem como merece destaque a Regra 32.1, “a”, ao indicar o caráter curativo e preventivo da atenção médica quando se sublinha “o dever de proteger a saúde física e mental do recluso e a prevenção e tratamento de doenças, baseados apenas em fundamentos clínicos”.

A chegada da pandemia de COVID-19 e o reconhecimento de uma emergência sanitária pela OMS refletiu na adoção de uma diversidade de declarações, guias e recomendações emanadas por organismos e organizações internacionais, oferecendo importantes balizas e destacando a obrigatoriedade de uma série de parâmetros legais junto a esta nova realidade. Esses documentos dão conta de três aspectos: (i) a exigência de prevenir a circulação e infecção pelo vírus, (ii) os parâmetros e obrigações estatais frente à flexibilização de normas diante da pandemia e (iii) o monitoramento de violações de direitos humanos nesse período.

Quanto à vacinação, os organismos internacionais de direitos humanos anteciparam discussões e estabeleceram parâmetros. Em 14 de setembro de 2020, a OMS publicou o “Enquadramento de valores para a alocação e priorização da vacinação para COVID-19”, oferecendo seis princípios que devem guiar a distribuição de imunizantes entre países e a priorização de grupos em âmbito nacional. Os princípios de bem-estar humano, de igual respeito e de legitimidade, por exemplo, são importantes balizadores oferecidos pela OMS e com os quais se pode analisar o PNI e sua operacionalização em âmbito regional e local no Brasil [15]. A “Declaração sobre Acesso Universal e Equitativo à Vacina”, do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, órgão da ONU autorizado a interpretar o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, recorda que “o direito à saúde requer que os Estados façam com que as instalações, serviços e bens de saúde, incluídas as vacinas, estejam disponíveis, sejam acessíveis, aceitáveis e de boa qualidade” [16]. O Comitê enfatiza que a proibição geral de discriminação, prevista no art. 2º do Pacto, deve ser interpretada de forma que a priorização de grupos se baseie exclusivamente em necessidades médicas e motivos de saúde pública, mediante critérios elaborados com transparência e consulta pública, estando sujeitos a escrutínio público e revisão judicial para evitar a discriminação [17]. No sistema regional de proteção dos direitos humanos, a CIDH e sua Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais se manifestaram recentemente sobre as vacinas para COVID-19, entendidas como um bem de saúde pública mundial. As entidades fizeram apontamentos sobre as políticas públicas e medidas de vacinação existentes na Região, trazendo os direitos humanos para o centro dessas decisões através de uma série de princípios norteadores, sendo eles: igualdade e não discriminação, participação social, acesso à justiça, acesso à informação e prestação de contas, além das perspectivas de gênero e interseccionalidade [18].

Esse último princípio elencado pela CIDH e sua Relatoria permite dar um salto na análise do PNI e das decisões estatais sobre a COVID-19 relacionadas às pessoas presas no Brasil. Para tanto, é importante ter em mente os dois segmentos identificados anteriormente pelas próprias autoridades brasileiras e que, no contexto prisional, permitem pensar em escalas diferentes de risco e prioridade, que são (i) o grupo das pessoas presas não idosas e sem fatores de risco adicionais e (ii) aqueles que experimentam, portanto, um duplo risco diante da COVID-19, pois estão presos e pertencem a segmentos como as pessoas idosas, as pessoas com deficiência e as pessoas com comorbidades.

Em relação às pessoas presas que não apresentam fatores de risco adicionais, é possível entender que o PNI e sua operacionalização nos Estados atende, ao menos minimamente, a exigência internacional de se priorizar este grupo no momento da vacinação para a Covid-19. Isso, claro, não é válido para aqueles planos que não incluem as pessoas presas, como Ceará e Belém, por exemplo, o que pode deixar milhares de presos e servidores sem vacina, expondo-os a um risco injustificado e vindo a comprometer o cumprimento das obrigações internacionais por parte do Estado brasileiro. Ressalvas podem ser feitas também à transparência nos critérios adotados nos planos de operacionalização locais, tendo em vista que nenhuma justificativa tem sido apresentada para as escolhas divergentes no tocante à sequência da vacinação dos diferentes grupos prioritários. Contudo, é preciso salientar que os organismos internacionais reconhecem a complexidade dessa decisão e deixam margem para que os Estados adotem seus próprios critérios de priorização, desde que não ignorem suas obrigações internacionais.

No entanto, quando se constata que as pessoas presas pertencentes a segmentos de risco adicional, como os presos idosos, com deficiência grave ou com comorbidades, não estão sendo vacinados na etapa de imunização compatível com tais características de risco, o que se constata é a exclusão discriminatória das mesmas do calendário de imunização em razão de sua situação jurídica. Trata-se de uma escolha estatal que flagrantemente viola o direito à saúde e transgride o princípio de não discriminação, cristalizado na Regra 24.1 das Regras de Mandela da seguinte maneira: “A prestação de serviços médicos aos reclusos é da responsabilidade do Estado. Os reclusos devem poder usufruir dos mesmos padrões de serviços de saúde disponíveis à comunidade e ter acesso gratuito aos serviços de saúde necessários, sem discriminação em razão da sua situação jurídica”.

Como ressalta a CIDH em sua Resolução n.º 1/2020, a escassez de recursos (leia-se, nesse caso, de vacinas) não justifica atos de discriminação diretos, indiretos, múltiplos ou interseccionais, de modo que os Estados devem zelar por uma distribuição e acesso equitativos às instalações, bens e serviços de saúde sem discriminação alguma [19]. Embora, nesse caso, a discriminação se dê também em razão da situação jurídica de pessoa presa, é preciso salientar o que aponta a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas, quando exige, em seu art. 5º, que Estados desenvolvam políticas públicas de modo a não prejudicar aqueles idosos que são vítimas de “discriminação múltipla”, como os idosos privados de liberdade [20]. Não é possível, portanto, dissociar a exclusão dos mesmos do programa de vacinação dos processos de discriminação e invisibilidade que os idosos sofrem dentro dos presídios, onde compõem um grupo minoritário cujas especificidades em nada se veem atendidas por parte do Estado. No contexto atual, é preciso ter a clareza de que, caso não estivessem presas, essas pessoas seriam vacinadas na segunda ou terceira etapa dos planos de operacionalização de vacinação, o que inclusive já está em curso em todo o país. No entanto, dado o atual modelo dos programas de imunização, apenas por pertencerem ao universo de presos provisórios ou condenados, os mesmos ainda não receberam ou não têm expectativa de receber a vacina no curto prazo.


A Constituição Federal tem no princípio de não discriminação um de seus pilares, sendo vedada qualquer forma de discriminação no seu art. 3º, IV, além de um mandado de criminalização que estabelece, no art. 5º, XLI, que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. A Lei nº 13.976/20, que trata das medidas de enfrentamento à pandemia de Covid-19, reitera, em seu art. 3°, §2º, III, “o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas” nas medidas adotadas, dentre elas a vacinação e outras medidas profiláticas. Esses ditames são flagrantemente violados quando da exclusão de pessoas idosas e portadoras de comorbidades e deficiências em situação de prisão das etapas correspondentes de vacinação no PNI, sujeitando as autoridades responsáveis a responder por ato de improbidade administrativa em âmbito doméstico e o Estado brasileiro, na esfera internacional, pelo descumprimento de suas obrigações em matéria de direitos humanos.


É preciso registrar que mesmo a Resolução n.º 14/2021 do CNPCP, embora louvável por trazer, enquanto órgão da execução penal, o tema da vacinação para a discussão pública, não ataca o problema aqui levantado. A resolução possui uma redação dúbia ao recomendar a “observação irrestrita das fases e calendários previstos no PNI”. Seria preciso esclarecer se a observação exigida é para que presos em grupos de risco adicional sejam vacinados conforme suas características e vulnerabilidades específicas, ou junto aos demais presos, conforme preveem e está se dando a operacionalização da vacina em âmbito regional e local. É de se observar, ainda, que como o PNI não oferece, como quer apontar a resolução, fases e calendários unificados para todo o país, mas apenas delineia os grupos prioritários como diretrizes gerais.

Conclusão

Para além da população presa e das pessoas idosas e com deficiência que vivem em residências de longa permanência, as pessoas privadas de liberdade, lato sensu, no Brasil não estão incluídas no PNI e nos planos operacionais de vacinação regionais e locais para COVID-19 no Brasil. Apesar de fazer tal diagnóstico, o presente artigo não abrangeu a realidade das pessoas que vivem em abrigos, hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas e locais assemelhados, embora muitos dos argumentos, parâmetros legais e dados aqui levantados possam ser transplantados para essas realidades.


Além de identificar tal lacuna, a análise das decisões e das manifestações das autoridades estatais responsáveis pela execução penal e sistema de justiça revelam que a vacinação de pessoas presas foi um debate tardio no país, não priorizado nas decisões judiciais e medidas administrativas sobre a COVID-19 no cárcere. Quando o tema foi trazido a público pelo Ministério da Saúde em versões preliminares do PNI, parâmetros básicos de priorização das pessoas privadas de liberdade foram questionados por altas autoridades, o que foi revertido no momento seguinte.


Quando da adoção do PNI e dos planos de operacionalização regionais e locais, a priorização da vacina de pessoas presas na quarta fase de vacinação parece, de modo geral e se assim efetivada, atender aos parâmetros mínimos de direitos humanos (com a ressalva para a grave ausência desse grupo em planos como o do Ceará e Belém, dentre os planos analisados), embora todos tenham carecido de transparência e debate no momento do estabelecimento dos critérios e demais escolhas a respeito. Já em relação às pessoas presas duplamente pertencentes a grupos de risco, como pessoas idosas, com deficiências ou comorbidades, os planos de operacionalização violam a proibição de discriminação no acesso a bens de saúde, elemento fundamental para a garantia do direito à saúde e cumprimento das obrigações internacionais por parte do Estado brasileiro. Na prática, nenhuma medida de caráter estrutural tem sido tomada para que os mesmos sejam vacinados na etapa que corresponde a seu risco individual de exposição ao vírus, invariavelmente anterior à etapa de vacinação da população presa, em geral. Tal exclusão tem se dado notadamente em razão de sua condição jurídica, acentuando suas vulnerabilidades e riscos de evolução fatal por causa da COVID-19, bem como transgredindo os próprios pressupostos e objetivos coletivos da vacinação estabelecidos pelo Ministério da Saúde.


Esse é um cenário que reforça os desmandos do Estado brasileiro em relação à realidade prisional, que mesmo sob reconhecido Estado de Coisas Inconstitucional no âmbito doméstico e constantes alertas feitos por organismos internacionais de direitos humanos, não dedica a atenção e diligência devida às pessoas presas. Em tempos de encarceramento em massa, essa parece ser a lente predominante com a qual as políticas públicas voltadas e inseridas no contexto prisional administram, e tão só, as pessoas nele custodiadas. Ou seja, uma massa carcerária cujo tratamento ou atenção pouco varia conforme o tipo de prisão de que é alvo (se provisória ou em fase de execução), do regime prisional que cumpre (se fechado, semiaberto ou aberto) e vulnerabilidades específicas coletivas ou individuais. Em última instância, uma atuação alheia à complexidade dos desafios que se impõe a própria política criminal, onde o Estado não enxerga - e não faz valer – a pessoa presa como sujeito de direitos e na qual as penitenciárias continuam sendo meros instrumentos para “sustentar uma ordem em que a exclusão política e social de amplos setores da população se converteu em um de seus baluartes” [21].


Todos esses fatores contribuem para que, nesse momento de adoção das medidas preventivas e de vacinação de pessoas presas, o Estado brasileiro se coloque em débito com suas obrigações internacionais de direitos humanos. Ao não fazer dessas obrigações o centro das medidas de enfrentamento à COVID-19, autoridades ficam sujeitas a responderem por seus atos, o que também ocorre com o Estado brasileiro na esfera internacional, caso não se corrija a tempo a operacionalização das vacinas para a COVID-19. Nesse sentido, é urgente que as considerações feitas pela Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ e as recomendações feitas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, por exemplo, sejam replicadas em outras localidades, de modo que as fases de vacinação de cada grupo de risco incluam as pessoas presas, que seja feita busca ativa nas unidades prisionais a fim de identificar todas as pessoas pertencentes a esses grupos e, por fim, que as estruturas de Estado se mobilizem imediatamente para planejar, garantir e divulgar como se dará a imunização dos mesmos, sem discriminação.

[1] Gregory Hooks e Wendy Sawer, ao estudar a disseminação da COVID-19 em presídios e comunidades próximas, verificaram incidências antecipadas e picos de casos de COVID-19 em condados e regiões dos Estados Unidos onde existiam grandes unidades prisionais. Para eles, os achados da pesquisa reforçam a conexão entre encarceramento em massa e saúde pública. Ver em <https://www.prisonpolicy.org/reports/covidspread.html>

[2] BRASIL. Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a COVID-19, 3ª Ed. (Brasília - DF: Ministério da Saúde, 29/01/2021), p. 13.

[3] Ibid. p. 15.

[4] Ibid. p. 19.

[5] CEARÁ. Plano de Operacionalização para Vacinação Contra COVID-19, v.6 (Ceará: Secretaria de Estado de Saúde, Fevereiro de 2021).

[6] FORTALEZA. Plano Municipal de Operacionalização da Vacinação Contra COVID-19, v.5 (Fortaleza: Secretaria Municipal de Saúde, 31/01/2021).

[7] PARÁ. Plano Paraense de Vacinação – PPV/COVID-19, 1ª Ed. (Pará: Secretaria de Estado de Saúde Pública, janeiro de 2021).

[8] BELÉM. Plano Municipal de Operacionalização da Vacinação Contra a COVID-19 (Belém: Secretaria Municipal de Saúde. Janeiro de 2021).

[9] AMAZONAS. Plano Operacional da Campanha de Vacinação Contra a COVID-19 (Amazonas: Secretaria de Estado de Saúde, 17/01/2021); MANAUS. Plano Municipal de Operacionalização da Vacinação Contra a COVID-19, v.1.1 (Manaus: Secretaria Municipal de Saúde, dezembro de 2020); MINAS GERAIS. Vacinas COVID-19 (Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Saúde). Disponível em <https://www.saude.mg.gov.br/images/1_noticias/10_2020/2_out-nov-dez/22_12_SUBVS_JANAINA_VACINA_Covid-19-Municipios.pdf>

[10] RECIFE. Plano Recife Vacina: Estratégia de Vacinação para COVID-19, 1ª Ed. (Recife: Prefeitura da Cidade do Recife, janeiro de 2021).

[11] RIO DE JANEIRO. Plano Vacinação COVID-19 (Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Saúde, janeiro de 2021).

[12] O PNI estima um total de 753.966 indivíduos para esse grupo prioritário.

[13] Conforme o artigo, para os fins da Lei n.º 12.847/2013 consideram-se pessoas privadas de liberdade “aquelas obrigadas, por mandado ou ordem de autoridade judicial, ou administrativa ou policial, a permanecerem em determinados locais públicos ou privados, dos quais não possam sair de modo independente de sua vontade, abrangendo locais de internação de longa permanência, centros de detenção, estabelecimentos penais, hospitais psiquiátricos, casas de custódia, instituições socioeducativas para adolescentes em conflito com a lei e centros de detenção disciplinar em âmbito militar, bem como nas instalações mantidas pelos órgãos elencados no art. 61 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de”.

[14] O art. 4.2 do Protocolo Facultativo à Convenção da ONU contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Decreto n.º 6.085, de 19 de abril de 2007) estabelece: “Para os fins do presente Protocolo, privação da liberdade significa qualquer forma de detenção ou aprisionamento ou colocação de uma pessoa em estabelecimento público ou privado de vigilância, de onde, por força de ordem judicial, administrativa ou de outra autoridade, ela não tem permissão para ausentar-se por sua própria vontade”.

[15] OMS. WHO SAGE values framework for the allocation and prioritization of COVID-19 vaccination (Organização Mundial de Saúde, 14 de setembro de 2020). Disponível em <https://www.who.int/publications/i/item/who-sage-values-framework-for-the-allocation-and-prioritization-of-covid-19-vaccination>
[16] ONU. Statement on universal and equitable access to vaccines for COVID-19: Statement by the Committee on Economic, Social and Cultural Rights (E/C.12/2020/2, 27 de novembro de 2020), §4. Disponível em <https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/CESCR/E_C_12_2020_2_AUV.docx>

[17] Ibid. §5.

[18] CIDH. A CIDH e sua REDESCA chamam os Estados Americanos a colocar a saúde pública e os direitos humanos no centro das suas decisões e políticas sobre vacinas contra o COVID-19 (Washington, D.C.: Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 5 de fevereiro de 2021). Disponível em <http://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2021/027.asp> Ver também: Derechos Humanos de las Personas con COVID-19: Resolución 4/2020 (27 de julho de 2020). Disponível em <https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-4-20-es.pdf>

[19] CIDH. Pandemia y Derechos Humanos en las Americas: Resolución 1/2020 (Washington, D.C.: Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 10 de abril de 2020), §8. Disponível em <http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2020/073.asp>;

[20] Convenção assinada em 15/06/2015, mas ainda não ratificada pelo Estado Brasileiro.

[21] AGUIRRE, Carlos. Cárcere e sociedade na América Latina, 1800-1940. In: MAIA, Clarissa N.; et. Al (Org.). História das prisões no Brasil, v.1, 1ª Ed. (Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017), p. 44.

Sobre o autor:

Fabio de Almeida Cascardo
Mestre em Direito pela UFRJ, consultor em direitos humanos, membro do Comitê Estadual para Prevenção e Combate à Tortura e conselheiro penitenciário em representação da OAB/RJ, onde integra a Comissão de Direitos Humanos.

E-mail: fcascardo@gmail.com

 

Para ler o levantamento na íntegra, clique aqui.