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Que pandemia?
Superior Tribunal de Justiça mantém padrão de decisões sobre prisões preventivas para gestantes, mães de crianças e responsáveis por pessoas com deficiência

Manuela Moser e Marília de Nardin Budó

· Análises

A histórica invisibilidade das mulheres privadas de liberdade tem sido denunciada por coletivos, defensorias e mesmo por estudos acadêmicos, que mostram um histórico de abandono. Um avanço no sentido da compreensão dos efeitos do cárcere nas crianças quando suas mães são privadas de liberdade se deu com a aprovação do Estatuto da Primeira Infância (Lei 13.257/2016). A lei incluiu no art. 318 do Código de Processo Penal (CPP) a possibilidade de conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar para mulheres gestantes ou mães de crianças de até doze anos incompletos ou pessoas com deficiência.

Apesar de a lei ter surgido em 2016, foi somente em 2018 que sua implementação ganhou notoriedade pública em um habeas corpus que beneficiou uma mulher branca de classe média alta, no âmbito da Operação Lava Jato. Para fazer valer a regra para todas as outras mulheres nas mesmas condições, um coletivo de advogados provocou o Supremo Tribunal Federal (STF) através do Habeas Corpus coletivo nº143.641/SP, o qual resultou vencedor. Ao invés do verbo “poderá”, que aparece no caput do artigo, a interpretação constitucional seria a de que “deverá” o juiz realizar tal substituição. Na mesma decisão ficou firmado que “a prisão cautelar é medida excepcional para todos os cidadãos e excepcionalíssima em caso de mulheres, gestantes e tutoras de menores”. A decisão final, porém, restringiu os efeitos, com o seguinte texto: “excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelos juízes que denegarem o benefício”.

Em dezembro do mesmo ano, a Lei n. 13.769/2018 alterou novamente o CPP, incluindo o art. 318-A, determinando que “a prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar”, e descreveu apenas duas situações excepcionais: “tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa” (I), e “tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente” (II).

A pandemia de Covid-19 trouxe a acentuação da vulnerabilidade da população carcerária brasileira. Com isso em vista, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou a Recomendação n. 62, em 17 de março de 2020. A recomendação determina a reavaliação das prisões provisórias, com prioridade, entre outros grupos, às “mulheres gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por criança de até doze anos ou por pessoa com deficiência”. O mesmo grupo, portanto, tratado no art. 318-A do CPP.

Para compreender como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem aplicado o art. 318-A do CPP, e de que forma a pandemia e a Recomendação n. 62 influenciaram suas decisões, apresentam-se aqui os dados coletados a partir da pesquisa dos acórdãos do STJ que analisam pedidos de concessão de prisão domiciliar. Os julgados estão divididos em dois grupos: 1) todos os acórdãos que versavam sobre a conversão em prisão domiciliar para presas preventivas, julgadas entre 19 de dezembro de 2018, data da publicação da Lei n. 13.769, e o dia 16 de março de 2020, totalizando 227 acórdãos; 2) todos os acórdãos no mesmo sentido, porém, posteriores à publicação da Recomendação n. 62, julgados entre o dia 17 de março de 2020 até o dia 23 de junho de 2020, em um total de 27 decisões. Entre os dois períodos há, evidentemente, uma grande diferença em relação ao volume de documentos analisados. Por isso, ressalta-se que todos os dados comparativos a serem apresentados se dão em razão proporcional a cada um dos conjuntos jurisprudenciais.

Os gráficos 1 e 2, trazem os dados referentes à concessão ou não da prisão domiciliar1:

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No segundo período analisado, representado pelo gráfico 2, percebe-se a inversão da frequência entre as decisões que concederam e denegaram a prisão domiciliar:

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Comparando-se os dois períodos, resguardadas as devidas proporções, tem-se um percentual de 43,85% de denegação dos pedidos de domiciliar no período compreendido até dia 16 de março de 2020; contra 55,55% no período posterior à data. Os resultados contrariam as expectativas, uma vez conhecidas as circunstâncias em que foram julgados os pedidos mais recentes.

 

Os gráficos 3 e 4 apresentam os fundamentos para denegação da prisão preventiva:

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A categoria “Não ser a paciente mãe ou responsável por criança menor de 12 anos; ou ter sido o crime praticado mediante violência ou contra o filho” abrange os acórdãos que afastaram a prisão domiciliar por não estarem presentes os requisitos descritos na lei. Já a categoria “situação excepcionalíssima” refere-se a outros critérios, não previstos lei e, ainda assim, adotados pelos ministros para denegar as prisões domiciliares.

 

O Gráfico 4 abaixo apresenta os dados referentes ao período da pandemia2.

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Observa-se a manutenção na proporção das menções a situações excepcionalíssimas como fundamento dos acórdãos em cada um dos períodos: 38,61% no primeiro, e 40% no segundo. As excepcionalidades citadas em cada um dos lapsos temporais resguardam semelhanças, principalmente quanto à prevalência de condutas relacionadas ao tráfico e consumo de drogas, como se vê abaixo:

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No gráfico 5 foram elencadas as “situações excepcionalíssimas” tratadas nas ementas dos acórdãos. Algumas estão elencadas também no gráfico 6, que contempla as excepcionalidades citadas nas decisões do período posterior à pandemia:

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Apareceram nas decisões posteriores à Recomendação três circunstâncias não encontradas no primeiro período: “apreensão de arma de fogo”, “gravidade do crime” e “participação do adolescente nos ilícitos”. Alguns dos acórdãos fundamentados em situações excepcionalíssimas fizeram menção a mais de uma delas.

Recomendação nº 62 ignorada

Poucos dos 27 acórdãos julgados no período da pandemia fizeram menção à Recomendação n. 62/2020. Mesmo que apenas dez dos 27 recursos contemplados nesses acórdãos tenham sido autuados após a publicação da Recomendação, dentre esses dez apenas quatro decisões fizeram referência à pandemia de Covid-19. Independentemente da data de autuação dos recursos, vale apontar, todos os julgamentos ocorreram posteriormente à Recomendação, de forma que já era conhecida a situação da pandemia.

Em apenas cinco acórdãos são encontradas ponderações acerca dos dispositivos da recomendação. Em quatro delas a pandemia foi levada em conta para a concessão ou manutenção de prisão domiciliar; e, em um caso, apesar de apontada a impossibilidade de julgamento da questão por não ter sido ela levada à corte originária, averiguou-se que a paciente não preenchia os requisitos para a concessão.

Há ainda dois acórdãos em que a pandemia é desconsiderada para a decisão sobre o pedido da prisão domiciliar (concedida em um e desprovida no outro), porém, ela aparece para justificar o excesso de prazo da prisão preventiva. Aqui, portanto, a Covid-19 é lembrada apenas para discutir uma questão completamente alheia à proteção da saúde das pessoas privadas de liberdade.

A questão da pandemia é tratada de forma menos significativa em quatro acórdãos: em dois apenas se justificou a impossibilidade de análise do tema, sendo que ambos indeferiram a domiciliar; e em outros dois a Recomendação aparece apenas em trechos transcritos de decisões de instâncias inferiores ou relatadas as alegações da impetrante no relatório. Nesses dois últimos, a prisão domiciliar foi deferida em um acórdão e desprovida no outro.

Em seis dos doze acórdãos em que a prisão domiciliar foi concedida ou mantida, não houve qualquer menção à Recomendação n. 62/2020 ou à Covid-19. Como o direito à domiciliar nesses casos foi reconhecido independentemente da pandemia, as pacientes não sofreram nenhum prejuízo. Por outro lado, há dez acórdãos em que o pedido de domiciliar foi negado sem que os termos da Recomendação fossem levados em conta.

Conclusão: a exceção é a regra

O Brasil triplicou o número de presos nos últimos 20 anos, sendo hoje o terceiro lugar no mundo em números absolutos, ficando atrás somente dos Estados Unidos e da China. Em 2000, eram 232,7 mil pessoas presas, com uma taxa de encarceramento a cada 100 mil habitantes de 137, e um déficit de vagas de 97 mil. Em fevereiro de 2020, os dados divulgados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) referentes a dezembro de 2019 davam conta de uma população carcerária de 748 mil, com uma taxa de encarceramento de 359 para cada 100 mil habitantes, e um déficit de vagas de mais de 300 mil (BRASIL, 2019). Um terço das pessoas privadas de liberdade ainda não foram condenadas, e cumprem prisões cautelares.

A população carcerária é formada principalmente por homens (95%), jovens, sobrerrepresentadamente negros, pouco escolarizados, de baixa renda e sem trabalho formal, que estão presos por crimes da lei de drogas e contra o patrimônio (em torno de 60%). A população de mulheres aumentou ainda mais neste período: são sete vezes mais mulheres privadas de liberdade do que há vinte anos: eram 5 mil mulheres presas em 2000 e, em dezembro de 2019, já eram 36 mil (BRASIL, 2019). Os dados sobre a criminalização de mulheres mostram que em muito esse aumento de 700% decorre da política de guerra às drogas, já que 62% delas foram condenadas ou são acusadas do crime de tráfico de drogas (BRASIL, 2019; ARGUELLO; MURARO, 2015). Cerca de 80% dessas mulheres são mães e também são as únicas ou as principais responsáveis pelos cuidados de seus filhos (BRAGA; ALVES, 2015, p. 306).

A partir da análise de decisões de concessão da prisão domiciliar após o advento do Estatuto da primeira infância, estudos vêm mostrando que a presa não é concebida como sujeito de direito, mas tão somente a criança, anulando, dessa forma, os direitos e interesses da presa que é mãe. A mulher, ao ser presa, rompe com o imaginário social sobre a função social de mãe, passando a assumir apenas o papel de criminosa. Braga e Franklin (2016, p. 257) afirmam que “os marcadores de gênero têm um peso forte quando se trata de encarceramento feminino”.

Na pesquisa apresentada aqui, as comparações entre dados anteriores e posteriores à pandemia, e a baixa incidência de acórdãos em que a situação da pandemia foi levada em consideração mostram que o padrão das decisões proferidas pelo STJ manteve-se constante. Poucas mulheres presas preventivamente beneficiaram-se das disposições trazidas pela Recomendação n. 62/2020. Mesmo os acórdãos que afastam a possibilidade de domiciliar com base na circunstância “excepcional” do tráfico de drogas seguem frequentes. Essas “situações excepcionalíssimas”, assim mencionadas nas decisões com base no julgamento do STF, têm se mostrado a regra nas denegações dos pedidos de domiciliar, sem haver sequer um maior aprofundamento sobre seus pressupostos e sua aplicação ao caso concreto.

Tendo em vista a proteção garantida às mulheres gestantes e mães ou responsáveis por criança menor de doze anos ou por pessoa com deficiência pela lei penal e pela Recomendação n. 62, é no mínimo absurdo encontrarmos a manutenção do padrão das decisões denegatórias de prisão domiciliar durante a pandemia. Infelizmente, a ineficiência do Judiciário para se adaptar às novas circunstâncias se reflete na manutenção das mulheres pertencentes a esses grupos nos presídios: segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, em 28 de abril de 2020, havia 77 grávidas, 20 puérperas e 3.136 mães de crianças de até doze anos presas provisoriamente no país (BRASIL, 2020, p. 2). São vidas desdenhadas pelo sistema de justiça, que se recusa a atuar em prol da segurança mesmo diante das circunstâncias mais esdrúxulas.

1Esclarece-se que em um dos acórdãos do primeiro período foram julgadas duas pacientes, e houve uma denegação e uma concessão de prisão domiciliar na mesma decisão.

 

 2No gráfico 4, foi excluída da categoria “exceções previstas na lei” os crimes praticados contra o filho (art. 318-A, II, CPP), pois no período nenhuma decisão foi fundamentada em tal dispositivo.

Referências

ARGÜELLO, Katie; MURARO, Mariel. Mulheres encarceradas por tráfico de drogas no Brasil: as diversas faces da violência contra a mulher. Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão. out. 2015. Disponível em: http://andhep.org.br/anais/arquivos/1seminario/GT6.pdf

BRAGA, Ana Gabriela Mendes; ALVES, Paula Pereira Gonçalves. Prisão e políticas públicas: Uma análise do encarceramento feminino no estado do Ceará. Pensar, Fortaleza, v. 20, n. 2, p. 302-326, maio/ago. 2015

BRAGA, Ana Gabriela Mendes; FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Quando a casa é a prisão: uma análise de decisões de prisão domiciliar de grávidas e mães após a lei 12.403/2011. Quaestio Iuris, vol. 9, no. 1, 2016. DOI: 10.12957/rqi.2016.18579. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/18579

BRASIL, Ministério da Justiça. Secretaria de Assuntos Legislativos. Dar à luz na sombra: condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão. Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos. Brasília: Ministério da Justiça, IPEA, 2015.

________, Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias. INFOPEN Mulheres, 2ª edição. Brasília, DF, 2018. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf Acesso em: 16 de novembro de 2019.

________, Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Divisão de Atenção às Mulheres e Grupos Específicos. Informação Nº 63/2020. 29 de abr. de 2020. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/SEI_MJ11429916Informao_final.pdf Acesso em: 06 de agosto de 2020.

________, Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. HC 143.641/SP. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Brasília, DF, 20 de fevereiro de 2018a. Diário Oficial da União. Brasília, 01 mar. 2018. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143641final3pdfVoto.pdf Acesso em: 16 de novembro de 2019. Acessado em 29 de novembro de 2019.
 
________, Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. HC 143.641/SP. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Brasília, DF, 20 de fevereiro de 2018b Diário Oficial da União. Brasília, 01 mar. 2018. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143641final3pdfVoto.pdf Acesso em: 16 de novembro de 2019. Acessado em 29 de novembro de 2019.

Manuela Moser é graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Realizou serviço voluntário na Defensoria Pública de Santa Catarina e foi estagiária remunerada no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no Fórum Eduardo Luz e em Luiz Fernando Rossetti Borges Advocacia. É membra do Grupo Criminologia Crítica Vera Andrade (GCCrit/UFSC) e Literar – Grupo de Estudos em Direito e Literatura da UFSC.
 

Marília de Nardin Budó é professora do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutora em direito pela Universidade Federal do Paraná, Mestra em direito pela UFSC. Graduada em direito e em jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria. É coordenadora do Infovírus: Prisões e Pandemia.