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Casos diferentes, respostas padronizadas: 92% dos pedidos de liberdade fundamentados na COVID-19 são negados pelo TJRS em maio

Grupo de ensino, pesquisa e extensão Poder, controle e dano social UFSC/UFSM

· Análises,Publicações do site

Durante o mês de junho, o Grupo Poder, Controle e Dano Social da UFSC/UFSM analisou 486 decisões criminais do mês de maio do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em pedidos de liberdade ou prisão domiciliar a pessoas privadas de liberdade. O fundamento dos pedidos era a pandemia da COVID-19.

Desse total, 92% (448) dos pedidos de liberdade foram negados, e menos de 3% (13) foram concedidos. Os demais foram parcialmente concedidos (19) ou foram prejudicadas (6).

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Dos 194 pedidos de liberdade formulados com base no pertencimento do preso a grupos de risco para a COVID-19, 89% (173) foram negados.

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A “gravidade do delito” foi o fundamento de 52% (254) do total de decisões estudadas, mesmo quando o preso ainda não havia sido condenado. Os crimes em questão são os mais diversos: contra o patrimônio, de drogas, contra a pessoa, e de armas. Tanto na execução penal quanto no processo penal entende-se que a gravidade em abstrato não deve ser o único fundamento para negação de direitos, pois se este for o critério, a prisão se torna perpétua, já que não é possível alterar o passado. O critério para definição do que é grave não está claro nas decisões, pois não menciona o dano social causado pelas mais diversas condutas tidas como graves.

Em uma decisão analisada, na qual um custodiado condenado à pena privativa de liberdade por tráfico de drogas (crime sem violência ou grave ameaça) solicitava a concessão de prisão domiciliar por ser parte do grupo de risco, o desembargador Honório Gonçalves da Silva Neto, do TJ/RS chegou a fundamentar que "o simples fato de ser hipertenso, ter insuficiência cardíaca e colesterol alto, já tendo sido acometido de dois AVCs e, portanto, se enquadrar em grupo de risco não implica no necessário deferimento de prisão domiciliar" (Proc. nº 70084157882).

Talvez para o desembargador, que certamente tem acesso aos melhores hospitais e tratamentos médicos, possuir todas essas comorbidades pode parecer um “simples fato”. Mas no contexto de prisões superlotadas e sem acesso à saúde, fundamentar uma negativa de pedido de prisão domiciliar menosprezando a situação do custodiado é desrespeitoso e degradante. Na prática, permitir que um custodiado com a saúde debilitada fique suscetível à contaminação pelo novo coronavírus é sujeitá-lo à morte.

O estudo mostra que as decisões têm fundamentos repetidos em casos muito diferentes. Pertencer ou não aos grupos de risco, ou mesmo sequer argumentar nesse sentido conduzem ao mesmo padrão de argumentação. Ela também independe de o preso já ter sido condenado, ou estar cumprindo uma prisão provisória.

A narrativa mais frequentemente utilizada pelos desembargadores para denegar os pedidos é a visão sem fundamento científico de que as pessoas em situação de cárcere se encontram em isolamento social. Não foram encontradas nas decisões denegatórias fontes do campo científico, como estudos médicos sobre a pandemia fundamentados na situação real dos cárceres gaúchos. As fontes mais citadas foram Notas Técnicas dos executivos (SUSEPE, SEAPEN e ANVISA), além do contestado parecer do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (CREMERS).

O parecer do CREMERS, solicitado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, afirma que o perigo de contágio entre os detentos (incluindo também os que fazem parte do grupo de risco) é significativamente menor do que o experimentado pela população em geral, desconsidera a realidade do sistema prisional. No entanto, o parecer em questão foi elaborado a partir de parâmetros que não correspondem com a realidade das prisões gaúchas. Isso porque a entidade considerou que os presos têm acesso a monitoramento médico constante e medicações garantidos pelo poder público e, portanto, o isolamento proporcionado pela cadeia diminuiria o risco de contaminação por Covid-19.

Na realidade, o sistema prisional gaúcho conta com 21.924 vagas, mas abriga uma população prisional de 41.189 detentos, segundo os dados mais recentes do Infopen. Apesar de os magistrados alegarem, em grande número de decisões, que é possível cumprir o tratamento médico dentro do cárcere, essa afirmação não espelha a realidade: dos 115 estabelecimentos prisionais do estado, apenas 36 possuem Equipes de Atenção Básica à saúde no Sistema Prisional e 42% das unidades prisionais possuem consultório médico.

Isso significa que o parecer do CREMERS não foi construído avaliando a realidade das prisões gaúchas, que são superlotadas, com precário acesso à saúde e à higiene, fatores que, sabidamente, contrariam todas as medidas de precaução de autoridades de saúde e sanitárias. Aliás, a própria Organização Mundial da Saúde publicou um relatório no dia 15 de Março sustentando que pessoas privadas da liberdade em presídios ou centros de detenção tendem a ser mais vulneráveis a surtos de Covid-19 que a população em geral por causa das condições de confinamento na qual vivem por longos períodos. Diferentemente do parecer do CREMERS, o relatório da OMS não foi citado em nenhuma das decisões analisadas no mês de maio.

A consequência dessas decisões pouco fundamentadas é real: a manutenção da prisão de idosos, hipertensos, diabéticos, pessoas com HIV positivo e com tuberculose, mães, gestantes, etc. em prisões superlotadas e insalubres.

Os dados obtidos na pesquisa do Grupo Poder Controle e Dano Social se assemelham com as informações apresentadas no boletim informativo Desgarrado n. 1, do Núcleo do Pampa de Criminologia, do curso de Direito da Universidade Federal do Pampa. O Núcleo de Pesquisa analisou 231 decisões em habeas corpus criminais do TJ/RS, tomadas entre os dias 24 de março e 5 de maio de 2020 e constataram que 80,95% (187) das decisões foram denegatórias, 7,34% (17) foram concessivas e 11,69% (27) foram prejudicadas ou não conhecidas.

A primeira detecção de COVID-19 registrada no Painel do Depen foi no dia 5 de maio. No dia 1 de julho, o painel do Depen registrava 136 casos confirmados de COVID-19 entre a população prisional do RS. No dia 1 de agosto, o número de detentos infectados pelo vírus subiu para 745, o que representa um aumento de 447% nos casos em um mês. Segundo o juiz-corregedor Alexandre de Souza Pacheco, a taxa de contaminação de pessoas presas é quase quatro vezes mais do que a população em geral no Rio Grande do Sul, considerando apenas os presos na área de vivência.

As prisões no Brasil relegam um número cada vez maior de pessoas social e racialmente oprimidas a uma existência marcada pela violência. Superlotação, precário acesso a materiais de higiene, comida de baixo valor nutricional, propagação de doenças, práticas de tortura física e psicológicas são problemas que, historicamente, tornam as prisões um território de controle de corpos e de produção de dor - sobretudo às pessoas negras e pobres, principal clientela desse sistema. E, nesse contexto, a pandemia do coronavírus agrava os problemas e os efeitos - que não são contemporâneos, mas históricos e estruturais - do cárcere.

O Estado tem responsabilidade pelas vidas perdidas nas prisões, sobretudo aquelas evitáveis. Não seguir a Recomendação n.° 62 do Conselho Nacional de Justiça e permitir que pessoas com a saúde debilitada sejam contaminadas por um vírus que causa cada dia mais mortes no país e no mundo, faz do sistema judiciário responsável direto pela produção da barbárie que é naturalizada nas prisões brasileiras, e que é potencializada pela pandemia do novo coronavírus.

Sobre os/as autores/as: O grupo de pesquisa, ensino e extensão Poder, Controle e Dano Social atua no campo da criminologia e desenvolve suas pesquisas a respeito do controle social, formal e informal, com atenção aos mecanismos de atuação do sistema penal tanto nos processos de criminalização, quanto nos processos de imunização. A extensão também é foco do projeto, sobretudo em relação à divulgação científica e à disputa das narrativas sobre o crime, a criminalidade e a punição no discurso público. Uma das iniciativas da extensão é o podcast Legítima Defesa, disponibilizado nas plataformas digitais, cujos programas são construídos a partir das discussões da pesquisa. O grupo é coordenado pela professora Dra. Marília de Nardin Budó e é composto por pesquisadoras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).