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Tortura? Sobre existência, continuidade, prevenção e combate à tortura.

Ionara Fernandes, membra do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro

· Publicações do site

Há quem diga que tortura nem existe mais, que já foi superada no período da redemocratização do país. Algo démodé. Mas, cenas de violências extrema e tratamentos desumanos seguem colorindo o noticiário e o cotidiano de um grupo de pessoas. Nas periferias e favelas, prisões, unidades socioeducativas, espaços de acolhimento e unidades para tratamento de saúde mental são os locais com a maior incidência de práticas torturantes.
A tortura é uma técnica de poder e dominação do outro. E por ser uma técnica, é uma atividade pensada, planejada e regulada com finalidade determinada. O corpo e a mente são sempre o alvo do exercício desse poder e a produção das marcas são o resultado que visa perpetuar o registro do ato na alma e na pele da vítima. Pessoas que passaram pela tortura dificilmente esquecerão da dor sofrida.
Definir tortura não é simples, mas necessário. Não é qualquer tipo de violência que pode ser caracterizado como tortura. Até porque, se defendermos que tudo é tortura, nada o é. O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ) trabalha com o conceito de tortura da Organização das Nações Unidas, construído na Convenção contra a tortura de 1984. O documento contempla seis elementos que caracterizam a tortura, são eles: a dor e/ou sofrimento físico ou mental causando nulidade da personalidade, mesmo que instantânea da vítima. A intensidade da dor e do sofrimento devem ser severas, caso contrário serão enquadrados em maus tratos ou ainda tratamentos cruéis, desumanos e degradantes.
A ação torturadora deve ser dolosa, ou seja, praticada com a intenção de causar dor e o sofrimento a vítima. Deve também ter uma finalidade, um motivo para a ação, que conforme os estudos clássicos sobre tortura variam entre a obtenção da verdade, a confissão e extração de informação, ou ainda, o castigo. A definição ressalta também que a dor e sofrimento torturadores não podem ser decorrentes de sanções previstas em lei, caso contrário não será considerado tortura e, por fim, o ato deve ser realizado, instigado ou consentido por um agente público.
No Brasil, policiais militares, civis, guardas municipais, agentes socioeducativos e penitenciários são os agentes públicos com maior envolvimento em práticas de tortura. Suas posições de “protetores da lei e da ordem” sugerem a detenção de poder e controle sobre a população, possibilidade o exercício de ações ilegais, como a tortura.
Contudo, o conceito da ONU, ao longo dos anos foi sendo ampliado a partir do entendimento de diversos órgãos internacionais. Dessa forma, além da definição clássica, outras condutas podem ser compreendidas como tortura, a saber: intimidação e coerção, ameaças de morte, privação sensorial, bem como: escuridão total, odor intenso, incomunicabilidade e isolamento prolongado, barulho estrondoso ou permanente, dentre outros, a superlotação, o uso excessivo da força para cumprimento da lei, penas corporais, castigos excessivos e pena de morte, também são considerados tortura. Em relação as mulheres, casos de estupro, abuso e assédio sexual, testes de virgindade e aborto forçado também são consideradas técnicas de tortura.
Ainda que sua prática seja ilegal e criminalizada em diversos países do mundo, como o Brasil, a tortura ainda habita no cenário cotidiano. As legislações não são suficientes para conter ou impedir a prática de tortura. Socialmente ela não se apresenta como uma prática desviante, ela não é a exceção e tampouco oculta como aparenta ser, pelo contrário, é uma prática reiterada em virtude da sua funcionalidade, mesmo que seja contrária a lei ou que produza um dos maiores sofrimentos físicos e psíquicos ao ser humano. A prática da tortura existe para desumanizar a vítima, afirmar que a ela não se deve garantir a dignidade da pessoa humana.
A tortura segue sendo um recurso político de controle e dominação dos corpos. A política estatal de segurança pública, o sistema de justiça criminal e os sistemas prisional e socioeducativo são instrumentos de um grande aparelho massivo e contemporâneo de tortura. Naturaliza a violação dos direitos fundamentais e impõe as maiores dores e sofrimentos aos corpos aprisionados. O poder e a permanência de políticas criminais seletivas e racistas garantem a continuidade e eficácia da tortura hoje.
Acontece que a banalização da tortura potencializa sua existência, seja por ação seja por omissão. E de alguma forma, é nesse sentido que a atuação do MECPT/RJ se faz importante, dando visibilidade a sua existência e continuidade e questionando a sua eficácia no cenário em que o órgão identifica suas práticas. Por isso, é de extrema relevância compreender o olhar do Mecanismo sobre a tortura.
Nesse sentido, é necessário dar visibilidade a permanência da prática de tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. E o MEPCT/RJ atua em conjunto com outras instituições na construção permanente de políticas capazes de combater e prevenir essas práticas no estado, por meio de monitoramento e fiscalização nos espaços de privação de liberdade.
A inspeção é uma das ferramentas de trabalho mais utilizada pelo órgão. Numa visita in loco é possível identificar os cenários de tortura presentes nas estruturas das unidades, majoritariamente precárias e insalubres, na superlotação extrema de diversos espaços, funcionando como grande depósito humano. Dentro desses lugares, encontramos ainda espaços menores com destinações especificas que funcionam como proteção, aos que estão em maior vulnerabilidade e também castigo, lá a estrutura são similares a verdadeiras masmorras.
São nessas visitas que acontecem os diálogos com a população que habitam os espaços, e nesses momentos, relatos de violências físicas, sexuais, psicológicas e morais são apresentadas ao órgão. Em algumas ocasiões, a fotografia é o meio utilizado para registrar as marcas inscritas nos corpos torturados.
Toda inspeção é seguida de um relatório com a identificação das violações, violências e torturas encontradas nas unidades, e ao final, o MEPCT/RJ traz recomendações às instituições capazes de alterar o cenário encontrado. Além dos relatórios, o Mecanismo promove continuamente articulações com instituições parceiras e familiares das pessoas privadas de liberdade, com o intuito de fortalecer o sistema de prevenção à tortura no estado. Assim como a tortura teve sua dimensão ampliada na contemporaneidade, a política de combate à tortura também precisa ser ampliada, com estratégias de prevenções efetivas e permanentes.