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Tortura? Sobre existência, continuidade, prevenção e combate à tortura.

Ionara Fernandes, membra do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro

26 de junho de 2020

Há quem diga que tortura nem existe mais, que já foi superada no período da redemocratização do país. Algo démodé. Mas, cenas de violências extrema e tratamentos desumanos seguem colorindo o noticiário e o cotidiano de um grupo de pessoas. Nas periferias e favelas, prisões, unidades socioeducativas, espaços de acolhimento e unidades para tratamento de saúde mental são os locais com a maior incidência de práticas torturantes.
A tortura é uma técnica de poder e dominação do outro. E por ser uma técnica, é uma atividade pensada, planejada e regulada com finalidade determinada. O corpo e a mente são sempre o alvo do exercício desse poder e a produção das marcas são o resultado que visa perpetuar o registro do ato na alma e na pele da vítima. Pessoas que passaram pela tortura dificilmente esquecerão da dor sofrida.
Definir tortura não é simples, mas necessário. Não é qualquer tipo de violência que pode ser caracterizado como tortura. Até porque, se defendermos que tudo é tortura, nada o é. O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ) trabalha com o conceito de tortura da Organização das Nações Unidas, construído na Convenção contra a tortura de 1984. O documento contempla seis elementos que caracterizam a tortura, são eles: a dor e/ou sofrimento físico ou mental causando nulidade da personalidade, mesmo que instantânea da vítima. A intensidade da dor e do sofrimento devem ser severas, caso contrário serão enquadrados em maus tratos ou ainda tratamentos cruéis, desumanos e degradantes.
A ação torturadora deve ser dolosa, ou seja, praticada com a intenção de causar dor e o sofrimento a vítima. Deve também ter uma finalidade, um motivo para a ação, que conforme os estudos clássicos sobre tortura variam entre a obtenção da verdade, a confissão e extração de informação, ou ainda, o castigo. A definição ressalta também que a dor e sofrimento torturadores não podem ser decorrentes de sanções previstas em lei, caso contrário não será considerado tortura e, por fim, o ato deve ser realizado, instigado ou consentido por um agente público.
No Brasil, policiais militares, civis, guardas municipais, agentes socioeducativos e penitenciários são os agentes públicos com maior envolvimento em práticas de tortura. Suas posições de “protetores da lei e da ordem” sugerem a detenção de poder e controle sobre a população, possibilidade o exercício de ações ilegais, como a tortura.
Contudo, o conceito da ONU, ao longo dos anos foi sendo ampliado a partir do entendimento de diversos órgãos internacionais. Dessa forma, além da definição clássica, outras condutas podem ser compreendidas como tortura, a saber: intimidação e coerção, ameaças de morte, privação sensorial, bem como: escuridão total, odor intenso, incomunicabilidade e isolamento prolongado, barulho estrondoso ou permanente, dentre outros, a superlotação, o uso excessivo da força para cumprimento da lei, penas corporais, castigos excessivos e pena de morte, também são considerados tortura. Em relação as mulheres, casos de estupro, abuso e assédio sexual, testes de virgindade e aborto forçado também são consideradas técnicas de tortura.
Ainda que sua prática seja ilegal e criminalizada em diversos países do mundo, como o Brasil, a tortura ainda habita no cenário cotidiano. As legislações não são suficientes para conter ou impedir a prática de tortura. Socialmente ela não se apresenta como uma prática desviante, ela não é a exceção e tampouco oculta como aparenta ser, pelo contrário, é uma prática reiterada em virtude da sua funcionalidade, mesmo que seja contrária a lei ou que produza um dos maiores sofrimentos físicos e psíquicos ao ser humano. A prática da tortura existe para desumanizar a vítima, afirmar que a ela não se deve garantir a dignidade da pessoa humana.
A tortura segue sendo um recurso político de controle e dominação dos corpos. A política estatal de segurança pública, o sistema de justiça criminal e os sistemas prisional e socioeducativo são instrumentos de um grande aparelho massivo e contemporâneo de tortura. Naturaliza a violação dos direitos fundamentais e impõe as maiores dores e sofrimentos aos corpos aprisionados. O poder e a permanência de políticas criminais seletivas e racistas garantem a continuidade e eficácia da tortura hoje.
Acontece que a banalização da tortura potencializa sua existência, seja por ação seja por omissão. E de alguma forma, é nesse sentido que a atuação do MECPT/RJ se faz importante, dando visibilidade a sua existência e continuidade e questionando a sua eficácia no cenário em que o órgão identifica suas práticas. Por isso, é de extrema relevância compreender o olhar do Mecanismo sobre a tortura.
Nesse sentido, é necessário dar visibilidade a permanência da prática de tortura e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. E o MEPCT/RJ atua em conjunto com outras instituições na construção permanente de políticas capazes de combater e prevenir essas práticas no estado, por meio de monitoramento e fiscalização nos espaços de privação de liberdade.
A inspeção é uma das ferramentas de trabalho mais utilizada pelo órgão. Numa visita in loco é possível identificar os cenários de tortura presentes nas estruturas das unidades, majoritariamente precárias e insalubres, na superlotação extrema de diversos espaços, funcionando como grande depósito humano. Dentro desses lugares, encontramos ainda espaços menores com destinações especificas que funcionam como proteção, aos que estão em maior vulnerabilidade e também castigo, lá a estrutura são similares a verdadeiras masmorras.
São nessas visitas que acontecem os diálogos com a população que habitam os espaços, e nesses momentos, relatos de violências físicas, sexuais, psicológicas e morais são apresentadas ao órgão. Em algumas ocasiões, a fotografia é o meio utilizado para registrar as marcas inscritas nos corpos torturados.
Toda inspeção é seguida de um relatório com a identificação das violações, violências e torturas encontradas nas unidades, e ao final, o MEPCT/RJ traz recomendações às instituições capazes de alterar o cenário encontrado. Além dos relatórios, o Mecanismo promove continuamente articulações com instituições parceiras e familiares das pessoas privadas de liberdade, com o intuito de fortalecer o sistema de prevenção à tortura no estado. Assim como a tortura teve sua dimensão ampliada na contemporaneidade, a política de combate à tortura também precisa ser ampliada, com estratégias de prevenções efetivas e permanentes.